Esper Kallás

Médico infectologista, é professor titular do departamento de moléstias infecciosas e parasitárias da Faculdade de Medicina da USP e pesquisador na mesma universidade.

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Esper Kallás
Descrição de chapéu febre amarela

Desigualdade e epidemias

A febre amarela mostra como conhecimento, classe social e poder econômico interferem no enfrentamento às doenças

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Entre as doenças que causaram problemas para a humanidade, a febre amarela ocupa um lugar de destaque.

O impacto da doença foi reconhecido muito antes de seu agente ser descoberto. Existem descrições compatíveis com febre amarela há centenas de anos. O primeiro surto nas Américas foi registrado no século 17, sendo este o primeiro vírus causador de doença humana descrito na história.

Seu impacto foi sentido ao longo da história, interferindo em movimentos humanos, guerras e atividades econômicas. Um dos mais conhecidos ocorreu durante a construção do Canal do Panamá. Depois de concluir a construção do Canal de Suez, o empreendedor francês Ferdinand de Lesseps convenceu investidores a financiarem a ligação entre os oceanos Atlântico e Pacífico.

Mosquito Aedes aegypti, que transmite a febre amarela
A febre amarela é transmitida pelo mosquito Aedes aegypti - Luis Rubayo - 26.jan.16/AFP

A empreitada francesa foi um fracasso. Assolados pela febre amarela e pela malária, calcula-se que cerca de 20 mil trabalhadores perderam a vida. Foram os americanos que compraram as ações da empresa francesa falida, conseguindo a concessão para a construção do canal, após negociarem o apoio ao movimento de independência do Panamá, em resistência ao golpe da Colômbia. O jornal The New York Times, à época, descreveu o episódio como "um ato de conquista sórdida".

A construção foi reiniciada e obteve sucesso graças ao investimento em pesquisas pelo departamento de saúde. Walter Reed, médico e major do exército americano, baseado nas observações do médico cubano Carlos Finlay, trabalhou com a hipótese de que a doença pudesse ser transmitida pela picada de mosquitos. Foi então que o coronel William C. Gorgas, chefe de saneamento, coordenou um extenso trabalho de controle do mosquito e tratamento de águas nos campos de trabalhos e arredores, tornando possível a construção, após 10 anos de seu início.

Nas últimas semanas, foi lançado o livro "Necrópolis: Doença, Poder e Capitalismo no Reino do Algodão'', de Kathryn Olivarius. Ainda sem tradução para o português, a autora traz a descrição do impacto da febre amarela no século 19, na região produtora de algodão nos Estados Unidos, principalmente no estado da Louisiana.

A doença, que matava menos os brancos que os estrangeiros e negros "não aclimatados", foi usada como argumento para tentar justificar a escravidão racial como "natural", alargando as diferenças sociais. A classe dominante impingiu regras brutais de dominação para manter a força de trabalho sob controle, em um tempo onde os direitos individuais eram ainda um rascunho, para tantas pessoas desprovidas de liberdade.

Paralelos com a pandemia de Covid-19 são inevitáveis. Os privilégios das classes sociais com maior poder econômico resultaram em maior acesso à saúde e melhor chance de sobreviver à doença.

A febre amarela propicia conexão também com a discussão sobre vacinas. Foi a necessidade de seu controle, durante os trabalhos americanos no Panamá, que impulsionou o desenvolvimento de uma vacina eficiente, criada em 1937 pelo sul-africano Max Theiler, ligado à Fundação Rockefeller. Já administrada a centenas de milhões de pessoas, protege contra esta doença de altíssima letalidade.

O Brasil também teve seu protagonismo na vacina contra a febre amarela. O Rio de Janeiro foi o primeiro a implementar sua aplicação "em massa", na tentativa de reverter a terrível situação sanitária ainda mais agravada pela presença da doença, na década de 1940.

Ao fim, vacinas são armas eficazes contra a desigualdade de acesso à saúde. Baratas e fáceis de usar, democratizam a proteção, ajudando a afastar interferências econômicas e sociais.

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