Fernanda Mena

Jornalista, foi editora da Ilustrada. É mestre em sociologia e direitos humanos pela London School of Economics e doutora em Relações Internacionais.

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Fernanda Mena
Descrição de chapéu Eleições 2018

Acredite no que eu digo ser e fazer, mas não no que eu de fato digo e faço

Prática e discurso de Bolsonaro se contradizem até mesmo durante período eleitoral

Em eleições marcadas por uma guerrilha digital de informação e contrainformação, o candidato Jair Bolsonaro (PSL) chega à beira da rampa do Palácio da Alvorada exibindo, com rara clareza, contradições entre retórica e atitude.

Três fatores colaboraram especialmente para esta confusão entre o que ele disse e diz, e entre o que fez e diz que fará.

Primeiro, a profusão de informações sem lastro circulando por redes sociais e aplicativos de troca de mensagens, algo sem precedentes num processo eleitoral no país, colaborou para o embaralhamento entre fato e discurso.

Segundo, o atentado que sofreu em Juiz de Fora (MG), quando foi esfaqueado, o que gerou comoção nacional, deslocando uma abordagem racional de suas propostas para o campo nebuloso das emoções.

Terceiro, a ausência do capitão reformado do Exército nos debates de TV, tradicional arena de questionamento dos candidatos a cargos no Executivo, deixou correr solta a lógica bolsonarista do acredite no que eu digo ser e fazer, mas não no que eu de fato digo e faço.

Dá para acreditar que Bolsonaro queira acabar com privilégios ou com o que chama de “mamata” ou "mordomia", se ele mesmo recebeu mais de R$ 3.000 por mês da Câmara em auxílio-moradia mesmo tendo apartamento próprio em Brasília?

Até o final do ano passado, o deputado federal havia recebido um total de R$ 662 mil de dinheiro público com o benefício. Já escrevi aqui sobre o disparate do auxílio-moradia a juízes num país desigual como o Brasil, e o mesmo vale para o privilégio a membros do Legislativo, como o candidato Bolsonaro.

Dá para acreditar que Bolsonaro tenha condições de melhorar a segurança pública se, em 27 anos de atuação legislativa, não propôs medidas de melhoria nas carreiras e no trabalho de investigação das polícias?

O candidato nunca teve tradição de atuação nesta área vital e prega o porte de armas para defesa pessoal. A ciência criminal avalia que, quanto mais armas, mais mortes. Mas o candidato tem nesta medida controversa a solução mágica para um problema multifatorial.

Dá para acreditar que Bolsonaro queira seguir a pauta liberal de seu guru econômico e fiador junto ao chamado “mercado”, Paulo Guedes, quando o capitão reformado votou contra iniciativas que retiravam o monopólio estatal de setores como petróleo e telecomunicações e, recentemente, disse ser contrário à privatização dos setores de geração de energia e da Petrobrás?

Dá para acreditar que o candidato tenha a capacidade de reunir um time de notáveis em seus ministérios quando tudo aponta para um grupo de militares ladeados por Paulo Guedes?

Dá para acreditar que Bolsonaro vá respeitar as regras e instituições democráticas quando fez carreira exaltando o regime militar e reverencia o mais célebre de seus torturadores, o coronel Carlos Brilhante Ustra, apontado como responsável por submeter crianças a terror psicológico na tentativa de fazer seus pais falarem? E quando diz que minorias devem se submeter a maiorias, ferindo o princípio da igualdade, pilar fundamental do Estado Democrático de Direito? E quando diz que homossexualidade é falta de porrada? E que vai varrer quem quer que seja do país?

A retórica de cunho estelionatário infelizmente se tornou parte do jogo político brasileiro e não é exclusividade de Bolsonaro. Esteve presente, por exemplo, na campanha de Dilma Rousseff (PT) ao segundo mandato. Ao vencer, a petista rasgou as promessas de campanha e tomou caminho contrário daquele que tinha apontado.

O capitão reformado, no entanto, tem se mostrado exímio em expor esse conflito durante a própria campanha, ainda que seu eleitorado se recuse a percebê-lo.

Diante de um quadro em que a única coisa certa parece ser a vitória de Jair Bolsonaro, resta a esperança de que ele represente o que disse ser e querer fazer, e não o que de fato já disse e fez. Boa sorte, Brasil.

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