Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Tribunal de Orestes dos tempos atuais acontece dentro das redes sociais

Não bastassem os algoritmos a nos isolar em bolhas de certezas inarredáveis, ainda veio a pandemia

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Na Grécia arcaica, a noção de indivíduo se encontra dissolvida na noção de grupo, em especial, de grupo familiar [...] Se um dos membros do génos comete um erro —em grego, hamartia, “mancha que se espalha”—, […] todos os membros desse génos […] deverão expiar a culpa por esse erro.” (“A Oresteia e a Origem do Tribunal do Júri”, de Henriete Karam.)

A estirpe de Agamenon é marcada pela mancha. Seu bisavô, Tântalo, filho de Zeus com a mortal Dione, mata o filho, Pélope, e o serve num banquete aos deuses, que o ressuscitam ainda mais belo.

O desatino culinário de Tântalo não é a origem da praga familiar, ela nasce com Pélope, o ressuscitado. Desejoso de se casar com Hipodâmia, ele assassina o futuro sogro e é amaldiçoado pelo cocheiro da casa, dando início à desgraça.

Desenho de pessoa olhando celular, de onde surge uma espécie de fantasma escrito 'fúria julgadora' com raiva
Publicada em 23 de junho de 2021 - Marta Mello

Pélope e Hipodâmia geram Tieste e Atreu, que matam o meio-irmão por parte de pai, Crísipo, para satisfazer a mãe. Acusada de tramar o crime, Hipodâmia se suicida.

Desconfiado da traição da mulher com o irmão, Atreu dá cabo dos sobrinhos e, à maneira do avô, os serve a Tieste num jantar solene. Tomado de ódio pela canibalização dos filhos, Tieste busca conselhos no oráculo e estupra a filha, Pelópia, para gerar Egisto, futuro assassino de Atreu.

Morto Atreu, seus filhos, Agamenon e Menelau, se refugiam em Esparta. Para obrigar Clitminestra a desposá-lo, Agamenon mata o marido da moça, Tântalo, filho de Tieste, e o recém-nascido do casal.
Da união de Agamenon com Clitminestra, nascem Ifigênia, Eletra, Crisotêmes e Orestes.

Ifigênia é sacrificada pelo pai para satisfazer a deusa Artemis, que impedia as naus gregas de zarparem em direção a Troia, barrando o vento auspicioso. Terminada a guerra, Clitminestra vinga a morte da filha. Em conluio com o amante, Egisto, o assassino de Atreu, ela liquida com Agamenon numa banheira e é morta pelo filho, Orestes.

Delito imperdoável, o matricídio exige a punição exemplar pelas temíveis Fúrias.

As Fúrias, ou Erínias, são divindades que se ocupavam das falhas humanas, buscando a justiça de modo implacável. Seu surgimento é fruto de outra carnificina, essa ocorrida na família dos deuses primordiais.

Por temer ser destronado pelos filhos, Urano, o Céu, senhor do universo, os devolvia para o ventre da mulher Gaia, a Terra. Encorajado pela mãe, Cronos castra o pai e atira os testículos no vasto oceano. Do esperma misturado à espuma das ondas nasce Afrodite, deusa do amor, mas, do sangue respingado sobre a terra, são concebidas, entre outras divindades, as hediondas Fúrias.

Ameaçado de danação pelas malditas, Orestes justifica o assassinato de Clitminestra, alegando ter agido em nome da honra do pai. Para resolver o impasse, Atena, deusa da civilização, da sabedoria, das artes da guerra e da justiça, instaura o primeiro tribunal da história.

Diante de um júri formado por seis cidadãos notáveis de Atenas e tendo as Fúrias e Apolo como advogados de acusação e defesa, realiza-se o julgamento de Orestes. O empate é decidido pelo voto de minerva da deusa e o réu é absolvido.

Milênios se passaram e o mundo parece ter regredido a um período anterior ao do tribunal de Orestes. A mais avançada das tecnologias despertou nossos instintos mais primitivos. Nos caçamos e comemos, nos matamos e agredimos pelas redes, como que possuídos pelas irascíveis Fúrias.

Seja para servir às abjetas táticas de coerção pela difamação e o medo; seja para buscar a justiça coletiva, essa sim desejável, por meio da educação pelo exemplo, nos habituamos ao vigiar e punir dos expurgos.

Não bastassem os algoritmos a nos isolar em bolhas de certezas inarredáveis, ainda veio a pandemia. A guerra sanitária agravou a crise social, econômica e política, a solidão e a raiva, e reduziu a nada o que restava das liberdades individuais.

É preciso estar atento e evitar a harmatía. Uma falha, dúvida, desvio, incompreensão, engano ou temor íntimo pode despertar o #fúrias e a mancha se espalhará.

Sócrates tomou cicuta em respeito à lei suprema, mesmo que equivocada. Agamenon encarou a dor do filicídio para provar que entre as tropas e os seus, ele escolhia as tropas. Já Camus, o da Peste, preferia a mãe à causa. Difícil julgar.

Resta saber qual dos lados que operam segundo as Fúrias —e não falo de esquerda e direita, mas de civilização e barbárie—, qual dos lados leva vantagem na possessão.

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