Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Brasil de Bolsonaro é um retorno dos mortos-vivos e está virado do avesso

Como a Alice de Lewis Carrol, demos ouvido a um coelho falante e nos sujeitamos à realidade atual

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Em “A Morte como Quase Acontecimento”, palestra de Eduardo Viveiros de Castro disponível no YouTube, o antropólogo discorre sobre a relação dos povos indígenas com a morte.

Os inimigos dos vivos, para as populações ameríndias do Brasil, são os mortos. Os mortos não sabem que estão mortos e se sentem atraídos pelos vivos. Cabe aos vivos se protegerem, evitando a saudade e a proximidade dos espectros.

Tudo o que vive tem alma e consciência, fala e tem ouvido. Tudo é sujeito. E animais e vegetais são tão gente quanto os humanos. São humanos, na verdade, humanos na origem.

E, como os humanos são seres perigosos, é preciso ter cautela com os vivos e com os mortos. Jamais responda a um animal, um vegetal ou a um morto. Não dê conversa a um sapo, uma onça, uma árvore ou um parente morto. Responder significa se sujeitar ao ponto de vista do sapo, da onça, da árvore ou do morto. Responder é perder a condição de sujeito.

ilustração de um tigre
Ilustração de Marta Mello para a coluna de Fernanda Torres publicada em 9 de junho de 2021 - Marta Mello/Folhapress

Ser sujeito ou sujeitado. Eis a questão.

E, para traduzir o pavor que esses maus encontros causam nos indígenas, Viveiros de Castro fala da sensação que temos quando parados pela polícia.

Não adianta estarmos em posse dos documentos, sóbrios ou livres de substâncias ilícitas, não importa o quão inocente sejamos, o medo da polícia está sempre presente numa abordagem. A polícia desconhece qualquer autoridade que não a dela própria e, diante da farda, só nos resta a sujeição.

A polícia representa o poder de vida e morte do Estado, em especial se você é preto e pobre. O Estado é uma força sobrenatural.

Quando eu era alegre e jovem e comecei a sair à noite com os amigos, fugíamos de uma blitz como o diabo da cruz. A ditadura militar já dava sinais de trégua, mas a truculência com os estudantes resistia.

Com a explosão da miséria e do tráfico, a repressão aos comunistas se voltou contra as comunidades. Na zona sul, a moçada ainda evita as onças fardadas, mas o “tiro na cabecinha” não as mira mais.

Os anos de chumbo nos deixaram de herança a brutalidade da polícia. É preciso reconhecer, no entanto, a mudança ocorrida nas Forças Armadas desde o fim da linha-dura.

Por décadas, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica se mantiveram distantes da volubilidade da política, se limitando ao papel de garantidores da ordem e das instituições democráticas. Não mais.

Um levantamento do Tribunal de Contas da União identificou 6.157 militares da ativa e da reserva em cargos civis no governo de Jair Messias Bolsonaro. A elite militar parece dividida entre os que repudiam o engajamento partidário e os que defendem a ocupação dos palanques.

Alheio à fronteira que separa as políticas de governo das de Estado, Messias prega o direito das forças de segurança de se posicionarem.

Assim como o sapo, a onça, a árvore e os mortos falantes, que sujeitam o indígena incauto ao seu campo de significados, o presidente capturou o sentido do “sim”, antes pertencente aos progressistas, manipulando-o a seu favor.

Messias repudia os “nãos” impostos pelo politicamente correto e advoga em favor da liberdade de expressão. Assim, a pecha de censura e arbitrariedade cola nos “nãos” dos movimentos negros, no “não é não” das mulheres, na máscara obrigatória e na proibição do partidarismo das tropas.

Nesse mundo ao avesso, Jair é um libertário. É todo “sim”.

Seu elogio a Carlos Brilhante Ustra, no dia da votação do impeachment de Dilma Rousseff, não foi só provocação. A menção honrosa ao torturador defunto refletia o ressentimento dos que agiram nos porões da ditadura e se viram expostos à execração pública da Comissão da Verdade.

O governo de Jair é o retorno dos mortos-vivos, é o levante dos jagunços de Antonio Prata, é a onça ferida a discursar. Acuada pelo fantasma da sublevação dos quartéis, a elite moderada de quatro estrelas aceita a inversão da hierarquia e se cala.

A tropa de choque cegando a esmo, no Recife, sem que se esclareça de onde partiu a ordem; a invasão do Jacarezinho, no Rio de Janeiro; as balas de borracha disparadas à queima roupa, em Santa Catarina; a invasão das terras indígenas por garimpeiros e a impunidade de Pazuello apontam para o descontrole e o desastre em 2022.

Esquece a polarização, não existem dois lados. Como a Alice de Lewis Carrol, demos ouvido a um coelho falante, atravessamos o espelho e nos sujeitamos a um país onde tudo é segundo o seu contrário.

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