Há muita gente por aí achando que nossa democracia anda na beira do abismo. Nada pega melhor, nos dias de hoje, do que o articulista escrever alguma coisa em tom grave alertando sobre os riscos eminentes (como li dias atrás de um bom amigo) que todos estamos correndo. A cada nova palestra do general Mourão, nosso grande frasista, a turma vibra.
Até o Ney Matogrosso disse andar “assustadíssimo” e declarou que cumprirá seu dever cívico indo votar, nessas eleições.
O cientista político Steven Levitsky, semanas atrás, publicou um artigo reunindo algumas frases toscas do candidato do PSL, incluindo-se a patética entrevista dos “trinta mil fuzilamentos”, de 1998, e não titubeou: “Bolsonaro é o Chávez do Brasil”.
Achei isto um desrespeito com Guilherme Boulos, mas vamos em frente.
O professor Celso Rocha de Barros foi mais longe: Bolsonaro dará um golpe. Esqueçam Temer, os tucanos, o centrão. Eles já foram. Os verdadeiros golpistas agora são esses, que casualmente devem disputar com o PT o segundo turno. Às vezes penso que é muito golpista para uma só democracia.
Em menor escala, o mesmo bombardeio cai sobre o PT, por óbvio vindo do outro lado. É recorrente, em que pese com menos espaço na mídia profissional, a tese de que o petismo esta “fora do campo democrático".
As variantes aí são muitas. Há as teses sobre o “Foro de São Paulo”, sobre o apoio do petismo às ditaduras cubana, angolana, venezuelana, tem a conversa sobre “regulação da mídia”. Assunto não falta.
O interessante de toda esta conversa sobre os “riscos para nossa democracia” é que ela contém um paradoxo. Há certa unanimidade de que nossa polarização e retórica de fim de mundo chegou a um limite.
O problema é que não dá para dizer que temos que superar a radicalização política e ao mesmo tempo continuar exclamando que Bolsonaro ou Haddad (ou ambos) são uma ameaça à democracia.
É como se todos estivéssemos em uma festa, na madrugada, meio grogues, até que alguém sobe num banquinho e grita: “gente, mais amor, vamos parar com as brigas, mas aproveito para deixar claro que vocês não prestam!”. E segue o baile.
Temos aí o novo paradoxo do brasileiro (homenagem ao amigo Eduardo Giannetti): todos criticam a polarização, o radicalismo e pregam democracia e um novo tipo de diálogo, desde que o bicho papão do vizinho fique fora da conversa.
De minha parte, talvez por temperamento, talvez pela idade, não consigo levar nada disso muito a sério.
Tenho dito e repetido que vivemos um tempo de instabilidade e baixo consenso, que há muita toxina política no ar ainda do processo de impeachment, e que não nos acostumamos direito com o (imenso) ruído da democracia digital, que veio para ficar.
O fato é que as instituições brasileiras são fortes e estão em pleno funcionamento. E não vejo por aqui ninguém seriamente colocando em questão a regra do jogo democrático.
O PT talvez tenha sido quem mais se aproximou disso, com sua retórica do “golpe”, do “preso político”, com direito a artigo do Lula no The New York Times falando mal da nossa democracia e jogando militantes apaixonados contra o Sistema de Justiça.
Marcus Melo, nesta Folha, bem observou o esquecimento do Professor Levitsty sobre este pequeno detalhe.
Também no caso, do PT, reconheço, não levo muito à sério esta sequência de bravatas.
Muita gente boa da esquerda havia prometido “incendiar o País”, caso Lula fosse preso. Nada pegou fogo.
A presidente do partido chegou a dizer que ia ter que “matar gente”. Nada disso (felizmente) aconteceu.
A Justiça eleitoral, fria e serena, fez cumprir a lei, e quem está em campanha, ordeiramente, é Fernando Haddad. E bastou que ele subisse nas pesquisas para que o discurso do partido fosse ajustado para o modo moderado, com apelos ao centro, elogios ao senador Tasso Jereissati, acenos ao PSDB e a uma visão “construtiva” da política.
O partido que ia até o fim, com Lula, agora “está louco” para chegar logo o segundo turno, com Haddad. Perfeito. É assim a democracia. É assim um dia depois do outro.
Fernando Haddad, de fato, é um tipo bastante mais moderado do que a média dos dirigentes petistas, e não consta que tenha feito nada, em sua gestão na Prefeitura de São Paulo, ou à frente do Ministério da Educação, que tenha ameaçado a democracia, em algum sentido. Pelo contrário, foi ele quem criou o maior projeto de parceria publico privada em educação que tenho noticia na história brasileira, o ProUni.
De um modo geral, se passa o mesmo com Bolsonaro. O deputado ostenta um invejável histórico de frases de mau gosto, agora numa competição dura com seu vice, general Mourão. Ambos tem uma paixão incontrolável pelo politicamente incorreto e costumam tecer elogios inaceitáveis a tristes personagens do período autoritário.
Além disso, é indiscutível que Bolsonaro carece de articulação política e não parece um tipo particularmente talhado para negociações com o Congresso. Tão pouco mostra clareza sobre que tipo de reformas estruturais que, de fato, propõe ao País.
O ponto é que todas as virtudes acima sobram para candidatos como Geraldo Alckmin, e (quase) ninguém parece estar dando muito bola.
Penso que o País precisa encarar o fato de que esta é uma eleição muito diferente de todas as outras, desde a redemocratização. Inclusive a de 1989. Em primeiro lugar porque é uma eleição mais rica e completa.
Pela primeira vez, ao menos desde a campanha de Afif Domingos, em 1989, há uma clara opção liberal na campanha, representada pelo Partido Novo. Do outro lado há o PSOL, mais visível e estruturado, uma clara opção socialista.
E há um candidato expressando uma nítida posição conservadora e popular, que traduz o pensamento de uma parcela significativa da sociedade brasileira.
Você e eu podemos não concordar com o pensamento dessas pessoas sobre o aborto, maioridade penal, porte de armas ou ideologia de gênero. Mas elas existem. Pagam impostos, são tão brasileiros e (pasmem) tão importantes como os artistas e intelectuais bacanas que andam horrorizados com “essa gente fascista”.
Esta é uma eleição com um inédito componente cultural. Não é à toa que o debate econômico, sobre as reformas, o déficit e os temas que de fato vão definir o futuro do País estão praticamente fora da campanha.
A guerra cultural ultrapassa os limites de um mero debate de ideias, que é próprio da democracia. Ideias podem nos contrariar, mas crenças culturais mais amplas nos causam ultraje. Guerras culturais são feitas de grandes palavras e grandes certezas, que nos dão força para meter o dedo na cara do outro. E daí a coisa complica.
Ainda mais quando agora despontam para o segundo turno exatamente as duas grandes narrativas construídas no Brasil nos últimos anos.
A narrativa do mito da era dourada de Lula, de um lado, e a retórica da ordem, do antissistema, protagonizada pelo outro mito. A primeira tem seu paraíso na década passada; a segunda nos anos 70. Duas narrativas piscando o olho para trás, num país que precisa desesperadamente olhar pra frente.
O primeiro passo para quem está preocupado com a democracia, no Brasil, é parar de por lenha na fogueira e aprender a respeitar a legitimidade de quem se discorda.
É recusar a brincadeira de Carl Smith dos trópicos, e parar de tratar a tribo e o partido dos outros como inimigos, quando o que existe na democracia são adversários. Essa é uma liçãozinha básica que democracias mais maduras aprenderam há muito.
É difícil, eu sei. Retórica de fim de mundo dá muito mais likes, nas redes sociais. Mas é como ficar jogando lixo no terreno baldio da vizinhança. No fim, ninguém aguenta mais o mau cheiro.
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