Fernando Schüler

Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

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Fernando Schüler

O que deveríamos aprender com a tragédia do Museu Nacional

A vulgaridade nacional transformou a tragédia em objeto da guerra política

Lembro de minha última visita ao Palácio da Quinta da Boa Vista, alguns anos atrás. Ainda tenho as anotações que fiz: “O prédio está lá, semiabandonado, sem sinalização e quase nenhuma informação sobre sua história. Abriga um pot-pourri de peças egípcias, relatos da recente expedição brasileira à Antártida, o meteorito gigante e um sem número de objetos de enorme valor expostos de modo descontextualizado, entre paredes com mofo e salas fechadas".

Perguntei a uma funcionária por que não podíamos visitar o último andar do palácio, em que se localizavam os aposentos do imperador. "Não pode”, disse ela, “lá fica a administração". Tentei imaginar os funcionários do Palácio de Versalhes colocando umas divisórias de compensado e reservando para si os aposentos de Luís 15. Fui em frente.

Abaixo de uma placa alusiva ao presidente Nilo Peçanha, vejo encostado um velho brasão dos Orléans e Bragança. Imagino que alguém o colocou ali como um desagravo, sendo mais provável, porém, que o tenha feito por razão nenhuma. 

Estas coisas me vieram à memória no domingo triste do incêndio. Desde que vi o velho palácio ardendo, percebi o óbvio: aquilo tudo era uma espécie de obra do acaso anunciada.

Nos dias seguintes ao incêndio, a vulgaridade nacional transformou a tragédia em objeto da guerra política. Imediatamente se criou a teoria malandra de que há “dois lados”, de que tudo poderia se resumir a um tedioso jogo de versões entre esquerda e direita.

Não pode. Há responsabilidades claras neste episódio, e há um contexto em que esta tragédia ocorreu. E é importante que isto seja dito com clareza.

A primeira responsabilidade é de quem controla e faz a gestão do museu. Diz muito sobre o Brasil de hoje que a Universidade Federal do Rio de Janeiro não tenha até agora reconhecido este fato simples, assumido suas responsabilidades e pedido desculpas ao país.

O que assistimos é o contrário: a tentativa de driblar a própria responsabilidade com retórica política. Que seus dirigentes façam isto é previsível. Triste é que o país aceite este padrão de conduta. Ele consagra entre nós um padrão de irresponsabilidade difusa dos que administram a coisa pública.

Se a universidade não tinha condições ou capacidade de fazer a gestão do museu, há muito deveria ter transferido sua gestão para o governo federal ou para o setor privado sem fins lucrativos. Houve oportunidades claras nesta direção, como a proposta feita, no passado recente, por Israel Klabin.

Exemplo de discussão perfeitamente inútil é sobre a existência ou não de recursos para o museu. Vamos ser claros: isto é retórica de mau gestor. Além disso, é um desrespeito a milhares de bons gestores de museus, orquestras e instituições culturais, Brasil afora, que trabalham duro para captar recursos, atrair associados, mobilizar suas comunidades, formar parcerias e fazer as coisas acontecerem.

E o fazem, por óbvio, em condições muito menos favoráveis do que as que dispunha o Museu Nacional, com seu acervo, edifício e história de extraordinário valor, localizado no coração da cidade de maior peso turístico do país.

É interessante observar, por exemplo, o volume de recursos que o museu captou via Lei Rouanet, nos últimos anos. Segundo a Agência Lupa, a instituição teve apenas um projeto com captação, para exposição do acervo de mineralogia. Sejamos claros: isto é praticamente nada. Apenas em 2017, a Lei Rouanet gerou uma captação de R$ 1,256 bilhão. Não se trata de um dinheiro distribuído pelo governo, mas uma renúncia fiscal disponível a todos, que exige iniciativa para gerar resultados.

Qualquer instituição de porte razoável tem um plano anual de atividades, um leque estável de patrocinadores, associados, estratégias profissionais de busca de patrocínios e formação de capital. O Museu Nacional, mesmo observando-se esforços meritórios de sua Associação de Amigos, não tinha nada disso.

O Museu Nacional registrou 181 mil visitantes em 2017. No mesmo período, 289 mil brasileiros passaram pelo Louvre, em Paris, e mais de 400 mil pelo Museu Imperial, em Petrópolis. Não precisamos ir muito longe. A 20 minutos de distância da Quinta da Boa Vista, o Museu do Amanhã recebe, com folga, mais de 1 milhão de visitantes ao ano.

Trata-se de um museu com acervo mais importante? Mais bem localizado? Mais atraente? Não. São instituições distintas, este não é o ponto. A questão central é que o Museu do Amanhã é uma organização social. Trata-se de um patrimônio público gerenciado por uma instituição privada, sem fins lucrativos, que estabelece um contrato de gestão com o governo, recebe recursos, tem metas a cumprir, gestão profissional, programas educativos e uma visão de mercado cultural.

O mesmo que fazem o MoMa ou o Metropolitan Museum, em Nova York, apenas para ficar com os exemplos mais conhecidos. Estas instituições vão além: elas vêm formando, ao longo do tempo, fundos de "endowment", que nada mais são do que uma poupança de caráter permanente, que dá estabilidade e segurança para que a instituição adquira autonomia e dependa cada vez menos de governos para se manter.

Estas instituições há muito descobriram que não há contradição alguma entre sofisticação cultural e eficiência de mercado. Pelo contrário, a primeira frequentemente requer a segunda.

A verdade é que o Brasil tem um lado moderno, em sua gestão cultural, formado por instituições como a Osesp, a Pinacoteca de São Paulo, o MAR, no Rio de Janeiro, e o já citado Museu do Amanhã, e um lado ainda arcaico, que insiste no velho modelo de repartição pública, inteiramente falido. Infelizmente, o Museu Nacional fazia parte deste último modelo.

Por um bom tempo ainda guardar na memória a imagem do museu em chamas e, diante dele, o velho bronze de Pedro 2º. O velho imperador, observando aquilo tudo, parecia dizer, repetindo Talleyrand, “nada aprenderam, nada esqueceram”.

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