Flávia Boggio

Roteirista. Escreve para programas e séries da Rede Globo.

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Flávia Boggio

Como seria sua morte na Folha?

Obituários no jornal são campanha para mulheres se manterem vivas

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Nesta terça-feira, dia 8, o Brasil perdeu a atriz Aracy Balabanian, rainha do teatro e ícone do humor brasileiro. Dona de papéis inesquecíveis em filmes e novelas.

No entanto, para esta Folha, a vida de Aracy foi marcada por um aborto, por não se casar e por não ter filhos.

Sim, ela não teve maridos nem teve filhos. Quem iria trocar uma carreira maravilhosa e cheia de recompensas pela vida cruel que a maternidade —um trabalho exaustivo e solitário— e o casamento podem proporcionar a uma mulher?

Na ilustração de Galvão Bertazzi temos a dona morte sentada sobre uma cabeça inerte de uma mulher. Dona morte está lendo o jornal chamado ROLHA e de suas páginas entreabertas brotam ramos de plantas com folhas ressecadas e cheia espinhos. A paisagem à sua volta é um terreno árido e sem vida, com o chão rachado pela secura e nuvens esparsas. Uma xícara à sua frente está caída, deixando cair o cafezinho. Dona morte esboça um tímido sorriso de contentamento.
Ilustração Galvão Bertazzi para coluna de Flavia Boggio 9.ago.2023 - Folhapress

Mas, segundo um dos destaques da cobertura de sua morte no jornal, não adianta abdicarmos da maternidade. Seremos lembradas pelos filhos que não tivemos.

Não é de hoje que grandes mulheres, ao morrer, são citadas por detalhes em vida, muitas vezes com toques de moralismo.

Rita Lee, após sua morte, foi citada por sua relação com "drogas e discos voadores". Após lerem a nota, inúmeras mulheres desejaram embarcar em um óvni e fugir da Terra.

O mesmo aconteceu com Gloria Maria, lembrada por esconder a idade. Marília Mendonça, em seu obituário, foi "homenageada" pela luta com a balança.

A falta de sensibilidade com morte de mulheres não é exclusividade da Folha. A revista Veja resumiu Elis Regina, em sua capa, à "Tragédia da Cocaína". Fez o mesmo com Cássia Eller, motivo pelo qual foi processada pela família.

O jornalista Tiago Leifert, em malabarismo intelectual, culpou a torcedora Gabriela Anelli por sua morte na porta do Allianz Parque.

A reação da imprensa com mortes de mulheres nos faz pensar que, se a nossa vida já é difícil, fica pior quando morremos.

Chegamos até a ter um momento existencial, pensando: "Se eu morrer, como serei lembrada pela imprensa?".

Você fez uma pesquisa que salvou vidas? Não se preocupe. O destaque será: "Macumbeira, ela se casou cinco vezes".

Ganhou um Oscar e conquistou o EGOT? Vai ganhar o título: "Abortista, tinha péssimo gosto para tatuagens".

Até pensei no meu: "Mãe de merda, deixou o filho comer purpurina enquanto tomava vinho barato".

Talvez seja parte de uma campanha para aumentar a expectativa de vida das mulheres. Nunca desejamos tanto nos manter vivas.

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