Flávia Boggio

Roteirista. Escreve para programas e séries da Rede Globo.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Flávia Boggio
Descrição de chapéu Todas

O espelho era o seu mais formidável antagonista

Ao testemunhar seus ombros desaparecerem, experimentou uma satisfação indescritível

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ela era uma jovem saudável. Todos os membros e órgãos em sua devida colocação. Mas, desde muito cedo, num tempo tão remoto que a própria lembrança se recusa a reter, ela percebeu que seu corpo destoava do ideal.

O início desse estranho processo ocorreu com a mãe ocultando os doces da casa, proferindo a palavra que nenhuma criança deveria escutar, mas que se destinava a referir-se à própria filha: "gorda". Em frente aos visitantes, o pai exigia que ela cessasse a ingestão de alimentos e circundasse a casa para que queimasse calorias.

Na escola, eram proferidos apelidos cruéis, como "coelhinha", devido aos dentes, "porquinha", em virtude do nariz, e "xerófila", pelo tipo capilar.

Na banca de jornal, deparava-se com manchetes de revistas femininas que denominavam mulheres magras como "gordinhas", apresentando-as como o segredo para conquistar a perfeição corporal.

Ingressou na faculdade, abandonou o lar e trilhou uma carreira. Permaneceram a dieta, os produtos capilares e a insatisfação consigo mesma. O espelho era seu mais formidável antagonista.

O cirurgião plástico sugeriu apagar qualquer vestígio da antiga "pança de Buda". Aproveitou o pacote e abandonou o "airbag" que a desagradava. Trocou por novos, supostamente mais formosos, afinal não eram os seus.

Na ilustração de Galvão Bertazzi temos uma mulher, desmontada como se fosse uma boneca. Várias partes do seu corpo estão desencaixadas: braços, pernas, cabeça, seios, vagina, pés e mãos e podem ser substituídas por peças novas sempre que desejar. O desenho lembra um esquema, uma instrução de um brinquedo de montar.
Ilustração de Galvão Bertazzi para coluna de Flavia Boggio de 22 de novembro de 2023 - Galvão Bertazzi/Folhapress

Mas de que adiantaria um corpo perfeito se o rosto não refletisse seus desejos? Seu cartão de visitas reclamava impecabilidade. Modificou o nariz, ajustou o queixo, adicionou lábios e retirou os grandes lábios. Entretanto, algo ainda a incomodava.

Trocou de cirurgião algumas vezes. Até que um recomendou a redução do trapézio. Ela consentiu em aplicar botox para minimizar esse músculo do qual mal sabia a existência.

Ao testemunhar seus ombros desaparecerem, experimentou uma satisfação indescritível. Queria senti-la novamente.

Descartou diminuir os seios, a boca e o nariz. Afinal, quem necessita respirar?

Diminuiu os braços, suprimiu as pernas, pois nada incomoda mais do que uma mulher que caminha por si.

Foi nesse momento que compreendeu o que tanto a afligia. Ela era muito. O mundo não estava preparado para tanto.

Então foi desaparecendo, desaparecendo, até que, por fim, alcançou sua forma perfeita. Metamorfoseou-se em um nada e sumiu.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.