Ela era uma jovem saudável. Todos os membros e órgãos em sua devida colocação. Mas, desde muito cedo, num tempo tão remoto que a própria lembrança se recusa a reter, ela percebeu que seu corpo destoava do ideal.
O início desse estranho processo ocorreu com a mãe ocultando os doces da casa, proferindo a palavra que nenhuma criança deveria escutar, mas que se destinava a referir-se à própria filha: "gorda". Em frente aos visitantes, o pai exigia que ela cessasse a ingestão de alimentos e circundasse a casa para que queimasse calorias.
Na escola, eram proferidos apelidos cruéis, como "coelhinha", devido aos dentes, "porquinha", em virtude do nariz, e "xerófila", pelo tipo capilar.
Na banca de jornal, deparava-se com manchetes de revistas femininas que denominavam mulheres magras como "gordinhas", apresentando-as como o segredo para conquistar a perfeição corporal.
Ingressou na faculdade, abandonou o lar e trilhou uma carreira. Permaneceram a dieta, os produtos capilares e a insatisfação consigo mesma. O espelho era seu mais formidável antagonista.
O cirurgião plástico sugeriu apagar qualquer vestígio da antiga "pança de Buda". Aproveitou o pacote e abandonou o "airbag" que a desagradava. Trocou por novos, supostamente mais formosos, afinal não eram os seus.
Mas de que adiantaria um corpo perfeito se o rosto não refletisse seus desejos? Seu cartão de visitas reclamava impecabilidade. Modificou o nariz, ajustou o queixo, adicionou lábios e retirou os grandes lábios. Entretanto, algo ainda a incomodava.
Trocou de cirurgião algumas vezes. Até que um recomendou a redução do trapézio. Ela consentiu em aplicar botox para minimizar esse músculo do qual mal sabia a existência.
Ao testemunhar seus ombros desaparecerem, experimentou uma satisfação indescritível. Queria senti-la novamente.
Descartou diminuir os seios, a boca e o nariz. Afinal, quem necessita respirar?
Diminuiu os braços, suprimiu as pernas, pois nada incomoda mais do que uma mulher que caminha por si.
Foi nesse momento que compreendeu o que tanto a afligia. Ela era muito. O mundo não estava preparado para tanto.
Então foi desaparecendo, desaparecendo, até que, por fim, alcançou sua forma perfeita. Metamorfoseou-se em um nada e sumiu.
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