Há poucos anos, escrevi um texto me gabando de ter transformado minha filha em leitora. Eu contava que, tal qual o personagem de Kafka, ela havia passado por uma metamorfose, tendo se transmutado em um inseto, no caso, uma traça, com a couraça abaulada de tanto consumir livros.
Na ocasião, ela tinha nove anos. Como pode se esperar de uma escritora (desculpe o clichê), eu amo ler. Adoro a possibilidade de viver uma história em completo silêncio, coisa que só a literatura oferece.
Meu companheiro é dos meus. Portanto, à noite, tudo o que se ouvia na nossa casa eram páginas sendo viradas e aparelhos digestivos trabalhando, já que, antes de dormir, a tela era não apenas desincentivada como proibida para menores.
Essa rotina, que um coach chamaria de estratégia, acabou funcionando. Nunca obriguei minha filha a ler, mas, não podendo usar telas, tudo o que lhe restava era desenhar, olhar as manchas da parede ou se entregar à leitura. Depois de esgotar seus lápis, foi pegando um gibi aqui, um livro ali, até o dia em que a vi acordar cercada de celulose.
Poderíamos ter vivido para sempre nesse paraíso se a humanidade não tivesse mordido a maçã de Zuckerberg. Ou melhor, se ele e seus colegas do Silício não tivessem envenenado a maçã, usando diversos subterfúgios para prender a nossa atenção ou mesmo nos viciar nos aplicativos, como o botão de like, estímulo de resultado tão potente (e danoso) que chega a aparecer em tomografias na região do cérebro que ativa a dopamina.
De uns anos para cá, eu, meu companheiro e minha filha deixamos de ser traças e passamos a ser baratas insatisfeitas inventando desculpas para pegar o smartphone. Depois do jantar, digo para eles que preciso resolver uma emergência do trabalho e dou uma olhada no Instagram. Meu companheiro faz o mesmo, entrando no Twitter. Ela, que ainda não usa redes sociais, diz que precisa pegar uma tarefa no WhatsApp e aproveita para ver mensagens.
Sejamos honestos, quase ninguém está lendo. Ou quase ninguém está lendo tanto quanto gostaria. E se nem nós conseguimos, como cobrar isso dos nossos filhos? Se eu tivesse resposta, não estaria escrevendo esta coluna, e sim um best-seller, afinal muita gente está passando pela mesma crise.
Tudo o que sei é que vale a pena praticar pequenas resistências. Nem sempre lemos à noite, mas tentamos ler todas as noites. Nem sempre lemos em viagens, mas levamos livros para todas as viagens.
Sempre chega uma hora em que, como no poema "E agora, José?"
a festa acabou,
a luz apagou,
o wifi oscilou,
a mãe desplugou,
e o José, ou melhor, a criança, acaba pegando um livro.
E que livro é esse? Aquele que dá prazer.
E isso vale para todas as idades. Não conseguiremos competir com vídeos de gatinhos fofos ou com algoritmos turbinados para reter a nossa atenção se ficarmos de nariz empinado dizendo que só isto ou aquilo é boa literatura. Precisamos criar leitores livres, leves e soltos. Ou não criaremos.
Como já andei dizendo por aí, se o seu filho gosta de ler horóscopo, ótimo. Quem começa com áries acaba indo para libra, para a astrologia, para a astronomia, para a filosofia, e tudo isso pode dar em Clarice Lispector. Ou nos vídeos da Madama Brona. Porque também é preciso aceitar que, desde sempre, alguns de nós se tornam leitores ávidos e outros não.
Minha filha não é aquela traça que, em certo momento, aparentou ser, mas já sabe o caminho, já sabe como chegar às lombadas. E saber o caminho já é algum caminho andado.
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