Giovana Madalosso

Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

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Giovana Madalosso
Descrição de chapéu mudança climática

Minha cachorra não sabe o que fizemos com o planeta

Levando em conta a inércia humana com a questão do clima, depois desse purgatório não vem o paraíso, mas um inferninho ainda mais caliente

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Eu e a minha cachorra costumamos sair para o nosso passeio noturno a luz da cumplicidade. Eu sei quais canteiros ela mais gosta, que plantas prefere cheirar, por qual portão do prédio prefere voltar. Ela também me conhece. Sabe que possivelmente esquecerei o controle remoto, que teremos que voltar para pegar, que nessa hora direi algum palavrão em voz alta e, em algum momento, darei uma olhada no celular.

Ontem foi uma dessas noites em que saímos juntas. Quente demais para o mês de junho, eu usando uma blusa fina quando deveria estar de casaco. O que me fez pensar na crise climática. Segundo a ONU, os próximos cinco anos serão os mais quentes já registrados, com 98% de chance de que as temperaturas globais atinjam níveis recordes – e não, isso não é só devido ao El Niño.

Levando em conta a inércia humana com a questão do clima, depois desse purgatório não vem o paraíso, mas um inferninho ainda mais caliente. E não só caliente, já que temperaturas extremas serão experimentadas nas duas direções do termômetro. O que irá afetar a todos, inclusive a minha cachorra e seus descendentes.

Mapa de calor da Terra, na região do Pacífico, mostra área em vermelho na linha do Equador, registrando a chegada do  El Niño
Aquecimento do oceano Pacífico com a chegada do El Niño foi registrado pelo satélite Sentinel-6 Michael Freilich, da Nasa - Divulgação/Nasa

De repente, tive a sensação de estar escondendo algo importante dela. E o pior, com a lua de testemunha, aquele olho branco me fitando lá de cima. Se bobear, até o satélite onipresente sabe que provocamos uma emissão de carbono tão desenfreada que, nos próximos anos, todas as formas de vida da Terra serão prejudicadas. Como os pássaros que despencaram mortos do céu por causa do calor, em Gujarat, na Índia, em 2022.

Fiquei imaginando pássaros caindo de repente em torno de nós. Talvez um dia pássaros mortos caiam de repente em torno de nós. O resultado sinistro de uma ação também sinistra: pela primeira vez, em toda a história, a mão do homem provoca, molda e acentua uma tragédia natural. Como diz o escritor indiano Amitav Gosh, é como se a nossa obra voltasse no futuro para assombrar a nós mesmos.

E ainda que o palco esteja ruindo –caem os animais, despencam as geleiras, incendeiam-se as florestas, deslizam os morros, sobem os oceanos– como é difícil enxergar isso. Como é difícil ver além da árvore que nos dá sombra, do mar que nos refresca, do animal que nos entrega o seu amor incondicional.

Enquanto penso nisso, minha cachorra cheira o mato que cresce entre os paralelepípedos ao nosso redor, retardando ao máximo a sua volta para o apartamento. Puxo suavemente a sua coleira. É hora de ir.

Caminhamos em direção ao portão pelo qual ela prefere passar. Apalpo os meus diversos bolsos em busca do controle remoto. Trocamos um olhar, quem sabe até um sorriso, o meu em forma de dentes, o dela em forma de rabo que abana, marcando uma possível consciência mútua do quanto sou atrapalhada, do quanto sempre demoramos para sair e para entrar.

De repente, me ocorre que ela sabe muito mais do que imagino. Talvez até perceba que o planeta está mudando, que há algo de estranho no ar mais quente e poluído. Como percebia que havia algo de estranho na pandemia, ainda que não soubesse do vírus, percebendo a nossa rotina que havia mudado, os barulhos e interações na rua que haviam diminuído.

Finalmente encontro o controle e entramos pelo portão, costuradas pelos nossos passos e pela certeza de que, conscientes ou não das mudanças ambientais, seguiremos juntas, seguiremos todos juntos, dividindo o mesmo presente, o mesmo futuro e o mesmo espaço –este planeta chamado Terra, para o qual ainda não descobriram um substituto.

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