Giovana Madalosso

Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

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Giovana Madalosso

A maravilha de se maravilhar

O ato de maravilhar não diz respeito só ao objeto de observação mas a forma como chega até nós

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Nas últimas férias, dei a sorte de alugar um apartamento em frente a um largo onde aconteciam, algumas vezes na semana, apresentações de orquestras portuguesas. Nessas ocasiões, recebi no apartamento alguns amigos e pude assistir a um espetáculo paralelo: a reação dos que chegavam e se descobriam num camarote sobre a orquestra.

Alguns corriam para a varanda sem nem me cumprimentar direito. Debruçavam-se, aplaudiam com o público que enchia a praça, faziam fotos e vídeos. Outros davam uma orelhada na varanda e depois vinham para dentro. Outros não chegaram nem a olhar o que estava acontecendo lá fora.

A princípio pensei que os menos interessados eram aqueles que gostavam menos de música. Ou aqueles que já tinham viajado demais, visto orquestras demais, a ponto de gastar a pátina do entusiasmo com isso. Mas logo percebi que não há uma lógica simples regendo a orquestra do interesse humano.

Ainda que tudo possa pesar, o que mais fazia as pessoas atravessarem o umbral era a sua capacidade de se maravilhar com o que quer que fosse. Como uma criança.

celular cinza é segurado no alto por uma pessoa que está com o braço estendido; apenas o braço dela aparece na imagem
Mulher ergue o celular para registrar evento - Tingshu Wang/Reuters

Lembro uma ocasião em que minha filha teve piolhos. Passei o pente de metal nos seus cabelos e o chão se coalhou de minúsculos pontos marrons e de lêndeas branquíssimas. Pedi que se afastasse, eu ia limpar imediatamente aquilo. Não, ela gritou, freando com seu pequeno braço o meu corpo impaciente. Depois foi buscar uma lupa e ali se ajoelhou, olhando fascinada a lenta movimentação dos parasitas com suas frágeis perninhas.

É também com piolhos que começa o romance "Solenoide", de Mircea Cartarescu, mostrando que a capacidade de se maravilhar não é restrita às crianças. Ela também ocorre naqueles que não deixaram que esse músculo se atrofiasse quando cresceram, travado pela preocupação com a autoimagem ou pela mania de olhar demasiadamente para dentro de si —mania que eu, sempre pensando no que vou escrever, infelizmente, cultivo.

Por isso viajar nos faz tão bem, porque ali, em outra geografia, nos readmitimos como tolos e ignorantes —pressuposto básico para se maravilhar— e assim, desarmados, de olhos e plexo bem abertos, somos tomados pelas surpresas e pelos prazeres que vêm junto com elas. E que fazem a vida valer. Tanto que, de uns anos para cá, passei a sentir inveja dos deslumbrados. Ou daquelas pessoas que entram em tudo que é canto, comprando tudo o que é cacareco: estão extraindo do poço da vida adulta mais prazer do que eu.

No apartamento que aluguei, também havia crianças –uma delas, a menina que amava piolhos. E, na frente de seus rostos, havia telas. Mesmo tendo um músculo sobressalente para o encantamento, percebi que os pequenos também podem atrofiá-lo à medida que impõem uma barreira física entre suas pupilas e o mundo.

Claro que também é possível se maravilhar com a tela, mas não acho que seja a mesma coisa. Além de a experiência da fisicalidade ser sempre mais intensa, se maravilhar não diz respeito só ao objeto de observação mas a forma como chega até nós: incalculável, surpreendente, imprevisível. Ao contrário do algoritmo, carregado dos mistérios dos homens, carregada dos mistérios da vida.

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