Giovana Madalosso

Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

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Giovana Madalosso
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Fogacho ou aquecimento climático?

Na noite seguinte, acordei com um fósforo sendo riscado dentro do meu peito

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Achei que não poderia existir nada mais irritante do que receber, várias vezes por dia, ligações gravadas de uma empresa de telefonia que não mede esforços em demonstrar o seu desrespeito pelo consumidor. Até que, semana passada, descobri que todo incômodo pode ser superado, debutando na perimenopausa com o meu primeiro fogacho.

Na hora, não entendi direito o que estava acontecendo. A noite já estava quente, mas de repente um calor extra me acordou. A vida da mulher contemporânea anda confusa: ar-condicionado quebrado? El Niño? Aquecimento climático? Pensei que fosse o terceiro, afinal abusamos desse planeta a ponto de qualquer coisa ser possível, até uma onda de calor repentina. Tirei a camisola, voltei a dormir e esqueci do assunto.

Em meio a uma área com vapor, mulher cruza uma rua durante um dia frio em Nova York
Em meio a uma área com vapor, mulher cruza uma rua durante um dia frio em Nova York - Charly Triballeau/AFP

Na noite seguinte, acordei com um fósforo sendo riscado dentro do meu peito. Não um fósforo qualquer mas aqueles compridos, de acender fogão. A chama foi crescendo e irradiando membranas afora, até chegar nas extremidades do meu corpo, causando um insuportável siricutico que me fez arrancar toda a roupa. Com a camisola pendurada no abajur, bradei contra as emissões de carbono, mas logo desconfiei que o aquecimento climático nada tinha a ver com o assunto: cinco minutos depois eu já pescava a camisola e voltava a sentir um certo frio, puxando sobre mim o lençol.

Desde então, venho passando por esses calorões seguidos de striptease forçado algumas vezes por noite e não sei quantas vezes por dia. Nem sei como estou conseguindo escrever esse texto, já que, no momento, arranco a camiseta enquanto digito. Por causa do fogacho, tenho dormido mal para burra e agora vivo cansada, trocando as palavras e a sua concordância.

Dizem que se homem engravidasse, daria para fazer aborto em caixa eletrônico. Se homem tivesse fogacho, esse assunto seria tão popular quanto futebol. E aposto que eles se despiriam sem qualquer constrangimento em público. Já imagino a cena: durante um debate eleitoral, candidato afrouxa a gravata, tira o paletó e a camisa e diz que seu governo vai dar subsídios para a pesquisa mais urgente de todas: a reposição hormonal para os homens.

Como nós, mulheres, vivemos os calorões e tantos outros sintomas da menopausa em silêncio por tanto tempo? Até a geração passada, esse assunto era um tabu tão forte que as mulheres sequer falavam do assunto entre elas. Muitas ainda nem falam, escondendo do marido e dos amigos que estão na menopausa na esperança de que, suprimindo essa informação, sejam percebidas como mais jovens. Não sei se funciona —e qual a vantagem disso?— mas que serve para que fiquem mais solitárias e angustiadas, não tenho dúvida.

Ainda bem que um movimento contrário também vem acontecendo. Nos últimos anos, surgiram não sei quantos livros, podcasts, séries e até um musical sobre o assunto. Numa noite congelante em Nova York, durante a entrega de um prêmio, a atriz Emma Thompson brincou: nessa noite tão fria, finalmente estou grata à menopausa por alguma coisa.

É isso que precisamos fazer: falar sobre nossos corpos. E tratar como um imperativo tudo que traga alívio ao incômodo constante de ser mulher em um mundo feito para eles.

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