Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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Gregorio Duvivier

A grande ficha, em algum momento, vai cair

A pandemia deixa claro que não estamos todos no mesmo barco

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Uma enorme ficha de orelhão está vindo em alta velocidade na direção da Terra, como um meteoro em chamas. “A grande ficha”, diz a tira da Laerte, “em algum momento, ela vai cair”.

Ilustração faz releitura da clássica tirinha da laerte "A grande ficha, el um dia, vai cair". onde uma ficha telefônica caía em direção a Terra como um cometa. Na atualização, a ilustradora colocou o vírus do covid-19 (coronavirus), no lugar da ficha.
Catarina Bessell/Folhapress

Minha geração acreditou no fim da história, porque nasceu junto com ele. Parecia que o juiz tinha apitado o fim do jogo, e a humanidade estava só confraternizando. Os jogadores trocavam a camisa, se abraçavam, combinavam a festa. O mundo parecia que tinha chegado a um lugar bom: o racismo era feio, a ditadura também, “we are the world”, dizia a canção, “we are the children”.

A queda do Muro de Berlim parecia um final perfeito para a narrativa hollywoodiana: cai o muro, sobem os créditos. Alguns pensaram: ganhamos. Outros pensaram: perdemos. Mas, independentemente disso, viramos um só planeta, sem guerras nem fronteiras: liberal, anglófono, acadêmico, progressista, meritocrático. Estamos seguros. E saudáveis. A penicilina matou as bactérias, os analgésicos acabaram com a dor, e os ricos só vão morrer bem velhos. Os pobres vão morrer mais cedo, mas tudo bem, porque eles merecem. Ninguém se importa. Ou se importa, mas lamenta. O mundo às vezes é meio injusto, mas isso está dentro da normalidade: paciência.

Salvo um assalto aqui e um sequestro ali, os ricos viveram um tempo de paz social, política e biológica. As epidemias só aconteciam longe: na África, na Ásia, nas favelas e subúrbios. As guerras também: já não morria ninguém famoso.

Talvez, se o mundo tivesse acabado lá pelos anos 2000 e pouco, teria parecido um final de novela. O Brasil tinha eleito o primeiro presidente operário; os Estados Unidos, o primeiro presidente negro, a Europa tinha abolido as fronteiras. Podiam subir os créditos finais. Se fosse uma festa, tocariam “Mr. Jones” (“shalalalalalala, yeah-eh”), e cada um ligaria para a sua cooperativa de táxi.

Talvez, por um desleixo do contrarregra, não caiu o pano. Ninguém apertou o stop. Sem fala, os atores começaram a improvisar. E a multidão de figurantes passou a exigir papéis melhores. Descobriu-se que a máquina de fumaça soltava gás carbônico, e que a paz social, biológica e ambiental era uma fraude.

Vivemos dentro de um prédio construído por gente que não tem onde morar, e essa conta não fecha. Não pode fechar.

A pandemia deixa claro que não estamos todos no mesmo barco. Ou estamos, mas tem gente remando e tem gente tomando sol na proa. “Parasita”, “Coringa”, “Bacurau”.

Talvez não fosse o fim da história, mas do primeiro ato.

A ficha, a grande ficha: ela vai cair.

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