O ano é 2026. Toda semana ele comprava, na mesma banca de jornal, o embrulho pras fezes do seu buldogue francês. "Me vê um calhamaço de papel de pet?"
O jornaleiro tinha descoberto um nicho de mercado. Transformara sua banca de jornal decadente numa pequena pet shop, vendendo o mesmíssimo produto, mas agora repaginado. O jornal, antes encalhado em pilhas no canto da banca, agora atendia pelo nome de papel de pet, ou pet paper —e vendia como água, ou como jornal, nos tempos em que jornal vendia.
Outras bancas começaram a copiar. Bum. Fazia décadas que não se vendia tanto jornal no país. As pilhas de papel impresso tinham ganhado liquidez —e solidez, dependendo do intestino do cachorro. As Redações até voltaram a contratar.
Luiz, cliente contumaz, estava agachado enquanto esperava o intestino do seu cão funcionar. Distraído, olhou pro papel —e descobriu que ali tinham coisas escritas. Fazia tempo que não via letras sobre o papel opaco, sem o brilho azul da tela. Não, não era apenas uma estampa. Aquelas letras do embrulho de cocô estavam organizadas de tal maneira que formavam frases, e as frases pareciam ter algum sentido. A denúncia era grave: os deputados dispunham de um orçamento secreto, que podiam usar como bem entendessem.
Luiz saiu contando pra todo o mundo o que tinha descoberto. "Onde foi que você viu isso?", perguntavam. "No pet paper do meu dog." E todos caíam na gargalhada. Quem é que se informa pelo papel higiênico do cachorro?
Luiz não se deixou abalar. Virou um leitor obcecado de papel de pet. Não podia ver um cachorro agachado que logo pedia pro dono: "Se incomoda se eu ler antes dele usar?". Ali descobriu que os ricos pagavam menos imposto que os pobres, e que as igrejas não pagavam imposto nenhum — e que o país tinha 30 milhões de pessoas passando fome. Pra quê? Sua vida tinha ficado muito pior.
"Você vende algum pet paper sem informação?", perguntou pro jornaleiro, e tudo o que conseguiu foi um calhamaço compacto de folhas amareladas. Na capa, as palavras "Dom Casmurro". Não tinha informação, mas tinha uma história.
E tudo foi ficando ainda mais angustiante. Capitu traiu Bentinho? Como descobrir a verdade se só temos acesso à versão dele? Existe alguma coisa para além dos pontos de vista?
Passou a colher as fezes do seu cachorro com a boa e velha sacola plástica. Isenta, virgem, impermeável ao cocô e às nossas angústias.
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