Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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'Roberto Carlos: Outra vez' reacende debate sobre censura na MPB

Tomara que não repitamos eventos contra liberdade de expressão encampados por grandes artistas no passado recente

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No início deste mês será lançado o novo livro de Paulo Cesar de Araújo, "Roberto Carlos: Outra Vez". Como diz o próprio título, trata-se do retorno do autor a seu biografado, o cantor Roberto Carlos.

A nova obra de Araújo vem sendo bastante abordada na imprensa brasileira. Além de destacar as qualidades do autor, as reportagens recordam que seu primeiro livro sobre o rei, "Roberto Carlos em Detalhes", teve sua proibição em todo o território nacional poucos meses após seu lançamento. Em janeiro de 2007, Roberto entrou com uma ação pedindo o recolhimento da obra e a prisão do autor, além de multa de R$ 500 mil por dia.

Depois de um breve julgamento —para o rei, a Justiça andou a passos rápidos— ficou decidido que não haveria multa ou prisão. Mas os livros em estoque foram recolhidos e a obra, proibida. Tudo resolvido em um mês.

Em meio ao desespero de se ver sob o cutelo vil da censura, Araújo ainda tentou negociar, propondo retirar as partes da obra que teriam desagradado o cantor. Mas não houve conversa. A liberdade de escrita estava vetada pelo rei da música brasileira, que nem sequer soube afirmar em juízo o que o incomodou, mas viu-se no direito de defender que só ele mesmo poderia contar sua própria história.

Imagine se Lula ou Bolsonaro dissessem o mesmo? Só haveria biografias chapas-brancas no Brasil. Roberto confunde autobiografia com biografia, obras de status diferentes.

E imagine se Chico e Caetano dissessem o mesmo? Eles disseram! Certamente alguns se lembram que, em 2013, eles e vários astros da MPB participaram do grupo Procure Saber, defendendo que a privacidade vale mais do que o direito à liberdade de expressão. Embora raramente seja recordado, inclusive nessas reportagens sobre "Roberto Carlos: Outra Vez", esse foi um episódio vergonhoso e diz muito sobre o Brasil atual, antecedendo-o. Trata-se de uma forma de atuar na esfera pública de forma a calar a divergência.

O Procure Saber surgiu inicialmente como coletivo de artistas em busca de justiça na distribuição de direitos autorais de músicas. Capitaneados por Paula Lavigne, empresária de Caetano Veloso, o grupo fazia lobby no Congresso para uma mudança da legislação vigente, garantindo aos artistas os rendimentos que vinham perdendo diante da digitalização da música.

Foi quando a polêmica em torno de "Roberto Carlos em Detalhes" reapareceu na nossa opinião pública, àquela altura em polvorosa com a eclosão dos protestos de junho de 2013. Desde a proibição do livro de Araújo, autores e editores haviam entrado com ações judiciais, que chegaram no STF, para que o direito dos escritores de publicar biografias, mesmo aquelas não autorizadas, fosse garantido.

Havia um conflito entre o Código Civil, que garantia o direito à privacidade, e a Constituição, que garantia o direito à liberdade de expressão. Autores e editores defendiam que a Constituição fosse a lei maior e, obviamente, no direito à liberdade de expressão não poderia irromper em calúnia. Mas um fato verdadeiro sobre a vida de uma pessoa de interesse público não poderia ser impedido de ser narrado e contextualizado numa biografia.

Nesse momento, Roberto começou a conversar com o Procure Saber sobre uma possível política comum em relação às biografias. Assim, além do rei e dos já citados Chico e Caetano, Milton Nascimento, Djavan, Erasmo Carlos e Gilberto Gil, entre outros, se agarraram ao direito de privacidade e se uniram em torno da censura aos livros. Todos eles, lutadores pelas liberdades e contra a censura na época da ditadura, dobraram-se a interesses empresariais mais imediatistas e quiseram transformar a música em feudo, e os biógrafos em bandidos.

Jantar do ex-Ministro Juca Ferreira com a diretoria do Procure Saber - Instagram

É de se recordar também a nobre exceção: Alceu Valença. Na época, ele discordou corajosamente do posicionamento de seus colegas. O argumento central utilizado pelos artistas do Procure Saber era o de que uma biografia, ao abordar possíveis intimidades, poderia ser invasiva. No entanto, uma boa biografia não é um conjunto de fofocas. Um bom biógrafo procura recriar uma vida em sua época, com suas invenções, sucessos, ambiguidades e deslizes.

Para uma pessoa comum, o direito à intimidade continua sagrado, até porque não há interesse público em sua vida pessoal. Para uma pessoa pública, no entanto, a dimensão privada precisa ser relativizada, caso contrário fica inviabilizado qualquer trabalho biográfico sério. E mais: como considerar um tema privado quando o próprio biografado explora publicamente a sua vida pessoal, seja em canções, entrevistas e mesmo nas revistas de fofoca?

Paulo Cesar de Araújo contou de forma sensível, em "Roberto Carlos em Detalhes", como o rei perdeu a perna atropelado por um trem em sua cidade natal, Cachoeiro do Itapemirim. Contou que Tim Maia sentiu o desprezo de Roberto já consagrado, amigo de infância que se tornou famoso antes dele. Contou ainda que, depois de um show nos anos 1960, Roberto foi coagido por rapazes, que o ameaçaram. O ídolo sacou uma Beretta 6.35, fazendo dois disparos para o alto em pleno centro da capital paulista.

São fatos. Podem ser interpretados à vontade, mas aconteceram e podem ser abordados por um autor, se este os vê como necessários para sua narrativa. No caso de Roberto Carlos, há o agravante de que ele sempre compôs inspirado em questões pessoais. Ele escreveu "O Divã" em 1972 sobre o dia em que teve a infância atropelada. Ele cantou a amizade idílica com Erasmo em "Amigo", de 1977. Mas como outros, como Tim Maia, contam como é ser amigo do rei? O episódio da arma nos faz entender a simpatia de Roberto por Bolsonaro em declarações públicas recentes. Ambos são defensores do porte de arma como solução simplista para a segurança pública. Como um biógrafo não abordaria isso?

Foi isso que desagradou Roberto em 2007? Não sabemos. Afinal o rei, que aparentemente nem sequer leu sua biografia, não se dignou a dizê-lo. Disse apenas que a ideia de uma biografia não autorizada já seria uma espécie de regicídio. E foi apoiado por grande parte da MPB, lamentavelmente, transformada em bobo do corte. Por fim, foram derrotados no STF por unanimidade, nove votos a zero, em 2015. Ficou garantido o direito constitucional que entende que biografias de figuras públicas não precisam ser autorizadas.

O novo trabalho de Paulo Cesar de Araújo, que terá um segundo volume publicado em breve, busca contar a história de Roberto Carlos através de suas músicas. O livro já é um marco da bibliografia musical brasileira, pois é símbolo da resistência cultural num país onde até os próprios artistas ocasionalmente sabotam a cultura.

Qual será o posicionamento do rei agora? E, sobretudo, como se posicionará a MPB? Tomara que não repitamos esses eventos, os mais vergonhosos da história da música brasileira.

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