Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Gustavo Alonso
Descrição de chapéu machismo

Tribunal digital

Acusado de gordofóbico, meu texto apenas mostra a disputa entre corpo e mercado na vida de Marília Mendonça

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É possível Manuela D'Avila e Carlos Bolsonaro concordarem em qualquer assunto no Brasil atual? Eis que o impossível aconteceu: a candidata a vice em 2018 pela esquerda e o filho do presidente fascista criticaram este colunista. Manuela publicou na sua página do Instagram uma foto minha tal qual um bandido e me chamou de "misógino". Carluxo escreveu em sua conta de Twitter: "inacreditável". E criticou também a Folha, chamando-a de "impren$a". O Brasil está novamente unido.

O artigo que publiquei semana passada sobre a morte de Marília Mendonça desencadeou um tribunal moral nas redes, criando um comportamento de turba. Uma massa ensandecida partiu para cima de mim por meio das redes sociais, caluniando-me, xingando-me. Amigas minhas relataram-me perseguição simplesmente por terem meu contato em suas redes sociais. A turba ordenava a minha exclusão do debate público e o encerramento das minhas atividades profissionais. Esses haters e trolls eram instigados por militantes e políticos profissionais.

Enquanto Marília Mendonça era velada e enterrada, os deputados Sâmia Bonfim (PSOL-SP) e Alexandre Frota (PSDB-SP), criticavam meu texto: "machista", para a esquerdista, e "covarde", para o ex-bolsominion. A ativista Djamila Ribeiro escreveu que "o autor do texto realmente acredita que mulheres devem ser avaliadas pela sua forma física". A deputada bolsonarista Carla Zambelli (PSL-SP) escreveu que minha coluna era "uma das coisas mais desprezíveis" que já viu.

A grande maioria nem sequer leu a análise, que se encontrava exclusiva para assinantes. Mas a turba digital não precisa ler o texto completo para dar seu veredicto: bastam dois parágrafos para que sejam tiradas todas as conclusões. Esses dois parágrafos (84 palavras num texto de 1.381) foram printados e distribuídos virtualmente. Através desse print, tiveram certeza de que eu era "gordofóbico", "misógino", "insensível", "desconhecedor da música sertaneja", "preconceituoso", símbolo do macho enquadrador e explorador do corpo feminino.

Cabe reforçar o que disse no artigo: o mercado musical sertanejo é, a despeito da ascensão de Mendonça, machista e cobra das mulheres um padrão corporal. Segundo os críticos, ao utilizar a expressão "brigar com a balança", eu estaria pessoalmente referendando tal posição. Preferiram atacar o mensageiro ao rei. Muitos disseram que eu não poderia afirmar que o visual de Marília Mendonça "não era dos mais atraentes PARA o mercado da música sertaneja". Mas isso era um fato, não uma opinião. E o importante é que Mendonça subverteu tudo isso, como mostrei no texto. Foi curioso verificar como tantas pessoas que não acompanharam a carreira de Marília passaram a disputar a verdade sobre o seu corpo.

Minhas afirmações foram no sentido oposto ao de Luciano Huck, no domingo, e Ana Maria Braga, na segunda, também patrulhados. Huck disse: "Faz três semanas que eu estava com as três [Marília e Maiara & Maraísa]. Na verdade veio só ‘metade das três’, pois elas estavam magrinhas…". Ana Maria, ainda mais infeliz, disse: "Ela fez tanto pra chegar nesse shape lindo, físico, né? Ela emagreceu, criando um caminho pra ela, que fazia sentido, com esse vozeirão. E, de repente, ironia do destino, morreria dali a quatro, cinco dias". Minha declaração foi muito diferente da deles.

A turba digital brasileira age por impulso e tomada pela passionalidade. O debate quase nunca é racional. São grupos de guerrilha digital, partidarizados ou não, de diversas correntes políticas. Agem na grande rede com o objetivo de interditar o debate implodindo qualquer possibilidade de conversa a partir de acusações, não argumentos.

Discussões sobre machismo, misoginia e gordofobia são importantes, centrais na sociedade brasileira contemporânea. A turba, contudo, mobiliza esses conceitos como categoria de acusação dentro do jogo de eliminação, quase nunca para incrementar o debate. O jogo político torna-se o jogo do extermínio, não da disputa retórica, terreno da política por excelência. Na turba não há ponderação, não há conversa, não há audição. Todos falam ao mesmo tempo e seguem movidos por aqueles que gritam mais alto em meio à multidão, direcionando-a.

É importante fazer uma breve cronologia da repercussão, de forma a ficar claro o quanto as visões foram se construindo a medida que os trolls e haters iam forjando o nível do debate.

Soube da trágica morte de Marília Mendonça por volta das 16h40 da sexta (5) através da própria Folha, que me pediu um obituário da cantora com urgência. Prontamente comecei a escrever e acabei o texto por volta das 20h, que logo foi publicado no site. Era apenas mais uma entre três colunas sobre a morte de Marília, entre elas uma excelente escrita por Tony Goes. Em seguida, fui chamado para gravar o podcast Café da Manhã, que também contou com a participação da jornalista e ativista Semayat Oliveira. Passei meu texto aos responsáveis, que se basearam nele para a conversa que gravamos e que foi ao ar na segunda pela manhã.

Ao meio-dia do sábado (6) participei do Boletim MyNews, programa ao vivo do canal MyNews no YouTube. Nele estive ao lado da jornalista Juliana Braga, que me convidou, e Pauline Saretto, mestranda em Comunicação pela UFF. Indiquei meu texto a Juliana Braga, que o citou durante a conversa.

Até então ninguém, nem no MyNews nem no Café da Manhã, onde também fui entrevistado por uma mulher, tinha achado o texto misógino, machista, gordofóbico ou qualquer coisa do tipo. Tinham-no compreendido como uma homenagem a uma grande artista que, como todo ser humano, possui contradições e ambiguidades. O texto não era uma hagiografia, uma alegoria da vida de um santo, mas a história real de uma mulher segundo um pesquisador da área.

Em meados da tarde do sábado, comecei a ver meu texto picotado no Instagram, Facebook e Twitter, sempre em posts raivosos. Minhas redes foram invadidas. Eu havia me tornado o cancelado da semana. Algumas pessoas que tinham me congratulado pelo texto passaram a questionar o porquê de estar sendo "gordofóbico", "misógino" e "machista". Era visível que tinham mudado de opinião depois de uma segunda leitura, influenciados pela crescente turba ensandecida.

Na turba digital não se pensa mais sozinho. Pensa-se "coletivamente". O que quase sempre redunda não em mais democracia, mas no simples autoritarismo da maioria. Estamos esquecendo a máxima do grande Millôr Fernandes, que dizia: "livre pensar é só pensar". A opinião pública não deveria ser o que era para Nietzsche, a soma das preguiças individuais. Mas deveria ser construída por todos, sendo assim verdadeiramente democrática.

Eu não estava sozinho. Alguns poucos tentavam mostrar que o texto não era esse diabo que pintavam. Entre os que pediam ponderação, estavam o jornalista Álvaro Pereira Junior, o professor Wilson Gomes, e o colunista Joel Pinheiro da Fonseca, que percebiam o descalabro da situação. Éramos poucos para lutar contra calúnias e difamações em larga escala.

A jornalista Milly Lacombe elevou a calúnia a outro patamar ao escrever em sua conta do Twitter que eu propaguei "a fake news de que o piloto sofreu mal súbito por ter se vacinado". O que eu disse foi que a morte de Marilia despertou até teorias conspiratórias que são o símbolo do pior do Brasil atual. Promover fake news em cima de fake news é comportamento típico de quem quer conduzir a turba, mobilizando-a a qualquer custo. Algo que o governo federal faz com frequência.

Mas, sabemos, para a turba digital quem faz fake news é sempre o outro. Manuela d'Ávila criou em 2018 o Instituto Se Eu Fosse Você?, para conscientizar a população sobre o perigo das fake news, depois de ser vítima de uma chuva de mentiras na eleição presidencial daquele ano. Segundo seu site, "nossa ONG sempre teve como principal objetivo resgatar a ideia básica de empatia através da criação de conteúdo de combate a fake news e ódio nas redes".

No entanto, Manuela não teve nenhuma empatia quando forjou minha imagem em seu post de Instagram, no qual apareço com uma tarja preta na frente dos olhos. Trata-se de artifício usado por décadas pela imprensa sensacionalista na publicação de fotos de pessoas tidas como criminosas. A imagem também foi compartilhada pela deputada Jandira Feghali, do PCdoB. Numa visão que transforma o adversário em inimigo, D'Ávila se iguala ao posicionamento do sensacionalista Sikêra Jr., que me chamou de "elemento" e "nojento" em seu programa de TV.

Foi ainda no sábado que esta Folha iniciou a publicação de artigos que pediam reparação pela "misoginia", "machismo" e "gordofobia" supostamente ali presentes. De fato, a Folha alimentava a polêmica, dando espaço para os dois lados. É a lógica dos cliques, e a turba digital parece não ter percebido esse artifício, tamanha a comoção e o desejo de provar ao outro lado a verdade.

O artigo de Mariliz Pereira Jorge publicado no sábado intitulava-se "Mulheres não deixam de ser julgadas por sua aparência nem quando morrem". Em seguida, Pereira Jorge diz: "Fiquei pasma com o trecho da análise, publicada nesta Folha, sobre a trajetória da artista". Para a colunista, minhas frases foram "o retrato da gordofobia e da misoginia que pautam a sociedade", e eu teria uma "visão preguiçosa sobre o que está acontecendo". Preguiçosa parece ter sido a autora, que leu meu longo texto através de um recorte e atribuiu a mim uma interpretação que eu nunca fiz: "Marília fez muito sucesso apesar de ser gordinha".

Na segunda, o jornalista Tony Goes fez uma autocrítica de seu próprio texto. Goes havia chamado Marília de "cheinha"; eu, usei a palavra "gordinha". Nós dois havíamos afirmado que essa visão sobre os corpos das mulheres era do mercado, não nossa. Incomodado, Goes argumentou: "E se fosse um homem gordo que tivesse morrido? Teríamos lembrado de sua gordura? Indo contra o senso geral, penso que sim, especialmente se esse sobrepeso tivesse importância em sua carreira". Logo em seguida, Goes escreveu: "Sou da opinião de que quem sabe se o calo dói é quem leva o pisão. Por isto, prometo que vou prestar mais atenção".

O problema não colocado por Goes é que muitos acham que a questão do corpo não deve ser abordada, especialmente por um homem se referindo a uma mulher. Mas se o tema é importante na compreensão do assunto em foco, não é possível se calar sobre ele. E, se o problema foram os termos usados, ainda não temos consenso sobre quais seriam aqueles "permitidos". Comprometo-me a ouvir aqueles que gostariam de uma escrita mais delicada. Mas não posso concordar com aqueles que querem interditar certas temáticas.

Quem acompanhou de fato a trajetória de Marília Mendonça sabe o quanto esse tema fazia parte de sua vida pública. Ela falava sobre o assunto frequentemente, contando em lives como convivia com dietas, balança e exercícios. Era algo tão constante que seu último post no Instagram foi sobre esse tema. "Cheinha" e "gordinha" são ofensivos? Escolher as melhores palavras é um exercício que sempre será válido. Minha intenção nunca foi causar mal a quem quer que seja. O intuito foi demarcar como a disputa entre corpo e mercado foi central na trajetória artística de Marília e como ela conseguiu superar tais questões.

O que está em jogo no fim das contas é o corpo político de Marília Mendonça, não seu corpo físico. Carlos Bolsonaro e Manuela d'Ávila pegaram carona na polêmica de meu texto com propósitos distintos acerca de quem e do quê se pode falar sobre o corpo político da cantora.

Intelectuais feministas quiseram transformá-la numa militante feminista sem ambiguidades, quase uma heroína da causa. Esquerdistas universitários enfatizaram que ela participou do movimento #EleNão em 2018, contra Bolsonaro. Libertários defenderam que a ela cantava a liberdade do indivíduo fazer o que quisesse, fosse mulher ou homem. Direitistas sertanejos viram em Marília uma representante do agronegócio, do Brasil que "dá certo". Moralistas, como o apresentador Sikêra Jr., lembraram que ao louvar as amantes das músicas de Marília, meu texto desmerecia o sagrado matrimônio. Bolsominions fascistas buscaram atacar a imprensa livre e enfatizar que Marília teria percebido seu erro em criticar Bolsonaro e pedido desculpas, o que de fato aconteceu.

E assim por diante, a turba tinha interesses difusos acerca do corpo político de Marília, mas que se uniram em torno de um inimigo comum. Não fui apenas eu que tematizei o corpo político de Marília. Seu corpo esteve desde então em disputa por diversas vertentes políticas. Mas Marília nunca se reduziu completamente a nenhuma dessas vontades exclusivamente. Talvez por isso mesmo Marília fosse tão simbólica do Brasil.

Ainda no sábado, cometi o que considero um erro em lidar com essa situação. Em meio à chuva de xingamentos, acusações e ameaças, indignei-me e escrevi posts em minhas redes sociais sobre meus dois livros. Postados de forma abrupta em meio às ofensas da turba digital, quis mostrar que pesquiso a música brasileira há quase 20 anos, o que não vinha ao caso naquele momento. E, muito pior, ficou parecendo divulgação fácil. Por isso, peço desculpas. Não é fácil escapar do tom imediatista da turba digital. Ainda assim, não responsabilizo o coletivo pelas minhas decisões individuais.

Para concluir gostaria de dizer que estou otimista. Apesar de tudo, vi algumas virtudes nessa histeria conduzida pela turba digital. Em 15 anos de pesquisa com o tema da música sertaneja, eu nunca tinha visto doutores e pós-doutores, de diversas formações, disputando o significado de um artista sertanejo.

Até a trágica morte de Marília, a música sertaneja praticamente passou ao largo do interesse dos pesquisadores acadêmicos brasileiros. Talvez por isso mesmo, a ânsia em controlar o debate tenha levado a exageros dos recém-chegados. É importante demarcar que não fui criticado por nenhum artista sertanejo até ontem. Fui questionado pela intelectualidade militante, políticos e influencers digitais, que dependem da visualização nas redes sociais, e que tomaram Marília como seu projeto político. Seja como for, estamos evoluindo. Tomara que consigamos aprofundar o debate civilizado no país. Nada se faz mais necessário.

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