Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Roberto Carlos selou a paz entre sertanejos e caipiras nos especiais de fim de ano

Rei equilibrou disputa entre os que alargavam o espectro rural e os que combatiam a importação musical

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É impossível conhecer esteticamente o Brasil moderno sem passar pela influência de Roberto Carlos na música. Por causa do lançamento do livro "Roberto Carlos: Outra Vez", do historiador Paulo Cesar de Araújo, estamos há algumas semanas discutindo a influência do rei na música sertaneja. Esta é a terceira e última parte.

Como vimos, Roberto Carlos foi um importante divulgador da música sertaneja em seu especial de fim de ano, mesmo quando o gênero ainda não tinha se nacionalizado. Essa é a lista dos sertanejos convidados para os especiais de final de ano do rei na TV Globo:

  • 1986 — Chitãozinho & Xororó, Chrystian & Ralf
  • 1990 — Leandro & Leonardo
  • 1991 — Zezé Di Camargo & Luciano e Chitãozinho & Xororó
  • 1992 — Chitãozinho & Xororó
  • 1993 — Leandro & Leonardo
  • 1994 — Zezé Di Camargo & Luciano
  • 1996 — Almir Sater, Sérgio Reis e Roberta Miranda
  • 2005 — Chitãozinho & Xororó
  • 2008 — Zezé Di Camargo & Luciano
  • 2009 — Daniel
  • 2010 — Paula Fernandes
  • 2012 — Michel Teló
  • 2021 — Zezé Di Camargo

Apadrinhar a música sertaneja nos anos 1980 não era escolha tão óbvia. A música sertaneja era vista por grande parte da crítica como uma arte menor, interiorana, comercial e banal.

Além disso, havia nos anos 1980 uma disputa acirrada na música rural de matriz paulista: sertanejos versus caipiras. Os primeiros vinham alargando o espectro musical rural desde os anos 1950, ao incorporar gêneros importados como a guarânia paraguaia, o chamamé argentino, o bolero e a rancheira mexicanos, o rock de Roberto Carlos nos anos 1970 e o country e o brega na década seguinte. Nos anos 1980, faziam parte do rótulo sertanejo artistas como João Mineiro & Marciano, Trio Parada Dura, Chitãozinho & Xororó, Milionário & José Rico.

Do outro lado, estavam os caipiras, que desde os anos 1950 combatiam a importação musical, defendendo uma sonoridade "autêntica", a permanência de instrumentos como a viola caipira e as temáticas rurais na música do interior. Estavam deste lado artistas como Rolando Boldrin, Almir Sater, Renato Teixeira, Adauto Santos, Inezita Barroso. Sérgio Reis, a despeito de seu início na Jovem Guarda, conseguiu fazer nos anos 1970 a transição para a música caipira e era visto como seu legítimo defensor.

Essa disputa estava mais ou menos parelha até meados dos anos 1980. Nesta década, a Globo endossava os caipiras no programa Som Brasil, apresentado por Rolando Boldrin, que não permitia a entrada de sertanejos.

Foi neste contexto que Roberto Carlos topou incorporar os sertanejos em seus especiais de fim de ano, dando a eles prioridade total. Os caipiras Sérgio Reis e Almir Sater foram ao programa do rei somente em 1996, muito em função de serem atores, formando a dupla Pirilampo & Saracura, da novela "Rei do Gado". Enquanto isso, Chitãozinho & Xororó e Chrystian & Ralf já haviam comparecido dez anos antes, em 1986. No especial daquele ano, exibido no dia 22 de dezembro, Roberto recebeu Zezé Di Camargo & Luciano. Foi quarta vez que a dupla compareceu ao especial, certamente um marco da aliança do rei com a música sertaneja.

O rei atuou de forma decisiva no embate entre caipiras e sertanejos. Como parceiros da modernidade, a sintonia com os últimos é um dos motivos que explica o fato de estes terem se tornado sucesso de norte a sul do país.

Quando a música sertaneja se nacionalizou, na virada dos anos 1980 para os 1990, rompendo as barreiras regionais que a prendiam, Roberto estava lá. Quando Michel Teló alcançou um sucesso internacional em 2012 com "Ai se Eu te Pego", o rei também deu sua bênção, chamando-o a seu programa.

Com o surgimento do chamado "sertanejo universitário", a partir de 2005, Roberto não perdeu o bonde da história. Abençoou os novos artistas como Paula Fernandes e apadrinhou todas as gerações, catalisando a forma pela qual os próprios sertanejos contam a sua história. Vitoriosos no embate com os caipiras, os sertanejos se reconstruíram como descendentes destes, como se fossem uma linha evolutiva "natural".

Em 2010, foram lançados o CD e o DVD de Roberto chamados "Emoções Sertanejas". Neste disco, o rei chamou várias gerações da música caipira e sertaneja para cantar seu repertório —Milionário & José Rico, Roberta Miranda, Daniel, Sérgio Reis, Almir Sater, Gian & Giovani, Bruno & Marrone, Rio Negro & Solimões, Chitãozinho & Xororó, Zezé Di Camargo & Luciano e Leonardo; os "universitários" Paula Fernandes, Victor & Leo e César Menotti & Fabiano também foram chamados.

O chapéu sertanejo usado por Roberto Carlos no último número do disco, em que cantou "Eu Quero Apenas" com todos os artistas convidados, é o mesmo da capa do LP de 1991. No momento em que colocou o chapéu "histórico", o cantor foi muito aplaudido pelo público e por todos os artistas que lá estavam. E cantaram: "Eu quero ter um milhão de amigos/ E bem mais forte poder cantar".

Durante a gravação, o rei chamou Tinoco ao palco com as seguintes palavras: "Eu tenho a honra e a emoção maior de chamar ao palco esse ícone maravilhoso da música sertaneja: Tinoco!". O artista foi então homenageado e louvado por todas as gerações ao ganhar uma placa pelos seus 75 anos de carreira: "Esta é uma placa de 'Emoções Sertanejas' aos dois artistas pioneiros que ajudaram a criar a música que traduz a verdadeira alma do interior do Brasil e embala os corações da cidade grande".

Todos abraçaram Tinoco, louvando-o como "pai" da tradição. A música sertaneja contava sua própria história apagando as fissuras do passado com a música caipira, colocando-se como herdeira da tradição. E Roberto Carlos amarrou diversas tradições em torno de si, dando suas bênçãos reais a todas elas.

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