Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Lula pode atacar 'CPI do Sertanejo', mas gênero foi central em sua política

Petista dizia tocar Duduca e Dalvan direto em seus tempos de sindicalista, mas agora associa música a um bloco de elite

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Esta semana o candidato Lula se manifestou sobre os sertanejos e a recente polêmica em torno da contratação de shows: "Prefeitos gastam uma fortuna com artistas que cobram R$ 1 milhão e não são capazes de gastar R$ 30 com um grupo de teatro local, de música local. Não são capazes, porque é uma sociedade formada por uma elite dirigente [que] nunca quis que o povo tivesse acesso à cultura".

Ao tratar a música sertaneja como se fosse um bloco que fizesse parte integrante "das elites", o ex-presidente afugenta parte importante do segmento artístico nacional de qualquer aliança política em prol do país. Mas nem sempre foi assim.

O ex-presidente Lula em ato público no centro de convenções Ulysses Guimarães, em Brasília, na terça-feira - Gabriela Biló/Folhapress

Em campanha pela reeleição em 2006, Lula encontrou-se com Duduca e Dalvan, dupla que lhe trouxe lembranças da época de sindicalista, quando ele era fã dos autointitulados "os leões da música sertaneja". No encontro Dalvan cantou para Lula o sucesso "Espinheira", de 1984: "Êta, espinheira danada/ Que o pobre atravessa pra sobreviver/ Vive com a carga nas costas/ E as dores que sente não pode dizer".

Imediatamente o então presidente disse: "Eu ganhei minhas eleições de 1986 para deputado colocando essa música para tocar na porta de fábrica sem parar [desde] às cinco horas da manhã... Não precisava gastar um tostão. Era colocar a música e falar ‘o Lula tá aqui para falar com vocês...". O vídeo pode ser visto no YouTube.

José Trindade, o Duduca, conheceu José Gomes de Almeida, o Dalvan, em 1975 e lançaram seu primeiro disco três anos depois. Os "leões da música sertaneja" estavam atentos ao cenário político nacional do início dos anos 1980, e Dalvan se inspirou para compor protestos contundentes.

Na época, a sociedade brasileira voltava a se simpatizar pela ideia de votar para presidente, pela volta dos exilados políticos e por uma Constituinte. Em 1983 a dupla lançou o disco a "Anistia de Amor", canção que fazia uma releitura da discussão da anistia política para a relação amorosa: "Vou lhe dar uma anistia de amor/ Pra ver se agora podemos nos entender/ Vou abrir novamente a minha porta/ E dar um cantinho da cama a você".

No disco seguinte, de 1984, a dupla regravou o clássico "Para Não Dizer que Não Falei das Flores", de Geraldo Vandré, sucesso da MPB de protesto: "Vem, vamos embora que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora, não espera acontecer".

Em 1986, ano em que Lula foi eleito deputado federal, Duduca e Dalvan estavam desiludidos com a situação política. José Sarney, um herdeiro da ditadura, assumira a presidência. Frustrado, Dalvan compôs "Massa Falida": "Eu confesso/ Já estou cansado de ser enganado com tanto cinismo/ Não sou parte integrante do crime e o próprio regime nos leva ao abismo/ Se aderirmos aos jogos políticos seremos síndicos da massa falida".

Na contracapa do LP "Massa Falida" a dupla aparecia vestida de operários da construção civil, proletários como Lula. O disco vendeu 500 mil cópias. Foi o auge de Duduca e Dalvan.

Capa de "Massa Falida", de Duduca e Dalvan
Capa de 'Massa Falida', de Duduca e Dalvan - Reprodução

Em carreira solo, Dalvan continuou protestando. Em 1988, ano da Constituinte, ele lançou "Quero Terra": "Esperando encontrar nossa terra prometida/ Quero terra para trabalhar/ Quero terra para plantar/ Quero ter um lugarzinho e semear muitas sementes/ Para acabar com a fome que maltrata tanta gente". A causa da reforma agrária, hoje praticamente esquecida por Lula, era uma das principais bandeiras das esquerdas e de Dalvan na época.

Apesar das canções contundentes, Dalvan nunca foi reconhecido como cantor de protesto. Hoje a militância esquerdista simplesmente apaga as canções de protesto dos sertanejos ou, mais frequentemente, busca associá-los diretamente ao agronegócio. Tratar a música sertaneja em bloco, como se fosse um monólito sem fissuras, é o caminho para a miopia cultural.

A aliança de Lula e Duduca e Dalvan mostra que outros caminhos não são apenas possíveis, mas também desejáveis. Ampliar a luta contra os potenciais ditadores é aumentar também os lugares de fala e as formas de discurso. Resta saber se Lula e sua militância estarão à altura de tal empreitada.

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