Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Sérgio Reis quer ser Lula ao avesso, mas não abandona a política dos amigos

Cantor sertanejo não rompe com o compadrio e o personalismo, paradoxalmente tão presentes no lulismo

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Na última quarta-feira, este colunista realizou uma entrevista com o cantor Sérgio Reis que foi publicada neste jornal com grande repercussão.

Durante a entrevista, Reis alternou momentos de extrema doçura e bondade com períodos de intensa indignação. Nos trechos de maior exaltação, o caipira dá razão àqueles que buscam ver em todo artista sertanejo um estereotipado bolsominion.

Contudo, a parte mais interessante da entrevista não é essa. A faceta bolsonarista radical de Reis já era conhecida. Demarcar bolsonaristas e polarizar com estes tem sido o esporte favorito das esquerdas já há algum tempo, não sem razão. Mas tudo é muito mais.

O cantor sertanejo Sérgio Reis durante entrevista sobre o show 'Amizade Sincera' apresentado ao lado do cantor e compositor Renato Teixeira - Fábio H. Mendes/Folhapress

O mais rico da fala de Sérgio Reis foi ele lembrar que já teve relações pessoais com Lula. Esta fala foi publicada apenas parcialmente pela Folha. Na íntegra, a resposta de Serjão foi esta:

Hoje você é pró-Bolsonaro, mas você já apoiou Lula e Dilma… O Lula é meu fã, tem todos os meus discos. Se você quiser saber o que eu gravei, o Lula tem. Lula fez um trabalho belíssimo comigo lá no Hospital do Câncer de Barretos no primeiro mandato dele. Sempre fui amigo do Lula. Tanto é que ele me liberou R$ 10 milhões para o Hospital do Câncer de Barretos. Eu fui falar com o Lula, ele era meu amigo, porra! Ele me perguntou quanto era. Falei que precisava de R$ 10 milhões. Na hora ele ligou para José Dirceu e mandou os R$ 10 milhões para Barretos. Tanto é que, quando a ala de leucemia de crianças ficou pronta, chamei ele para fazer a inauguração e pôr o nome dele. Colocamos o nome da ala de Luiz Inácio Lula da Silva! Essas coisas você tem que dar valor, entende?

O trecho mostra um Sérgio Reis conciliador e amigável com Lula, que parece não fazer sentido nos dias polarizados de hoje.

Fica claro que, ao proferir impropérios ao comunismo, às esquerdas, à Globo e a várias personalidades, a ideologia de Sérgio Reis é permeada por relações afetivas.

Sérgio Reis não estava sozinho na apologia do ex-presidente. Para o gestor do Hospital de Barretos, Henrique Duarte Prata, o mediador da verba foi outro, conforme ele disse à Folha em 2013, mas Lula foi figura fundamental. "O Ministério da Saúde afirmou que não ia ter como liberar o dinheiro para a gente trocar um equipamento. Foi quando o Lula me pôs para falar com o [ex-ministro Antonio] Palocci, que tirou dinheiro do Ministério da Fazenda para ajudar o hospital", disse Prata.

Seja o mediador Dirceu ou Palocci, fato é que Lula foi homenageado pelo hospital de Barretos, no interior paulista. Seu nome batizou a ala de tratamento infantojuvenil do Hospital do Câncer. O evento de inauguração em abril de 2013 contou com a presença do ex-presidente e do então ministro da Saúde, Alexandre Padilha. Lula elogiou a instituição: "Não há no país nenhum hospital com o senso de humanismo que vimos aqui". Na época em que batizou a ala hospitalar, o ex-presidente estava saindo de um câncer na laringe, o que deu ainda mais sentido ao batismo.

Ala infantil do Hospital do Câncer de Barretos (SP), batizado com o nome do ex-presidente Lula - Edson Silva - 23.mar.12/Folhapress

Para todos os envolvidos, a homenagem a Lula era justa, pois o presidente teria sido "amigo" da instituição. O gestor do hospital, Henrique Prata, afirmou que Lula "quebrou protocolos" do governo ao socorrer a instituição quando ela passava por um momento difícil. Para Sérgio Reis, a ajuda passou pela amizade pessoal com o então presidente, o que permitiu o rápido acesso aos recursos. Seja como for, a proximidade pessoal com Lula ajudou os amigos do hospital a dar um "jeitinho" em benefício de milhares de doentes. A causa era justíssima. O método, nem tanto.

O Hospital de Barretos é privado, mas atende pacientes do SUS. No discurso de batismo, Lula defendeu o Sistema Único de Saúde. A fala do ex-presidente foi institucional e correta. Mas aceitar uma homenagem tão personalista, não.

No Hospital de Barretos há pavilhões que homenageiam diversos artistas que contribuíram com a instituição: Xuxa, Gugu Liberato, Victor e Leo, Fernando e Sorocaba, Bruno e Marrone, Chitãozinho e Xororó, Luan Santana, Edson e Hudson, Jorge e Mateus, Alexandre Pires, Zezé Di Camargo e Luciano, Sandy e Junior, Ivete Sangalo, Gian e Giovani e Leandro e Leonardo. Há também um pavilhão em homenagem a Sérgio Reis.

Não há problema um artista ser homenageado por uma instituição privada. Com políticos o buraco é mais embaixo.

Há leis que proíbem o batismo de obras públicas com nomes de pessoas vivas. Mas, como o hospital de Barretos é privado, a lei não se aplica. E, sejamos justos, outros políticos já batizaram alas do mesmo hospital. Enquanto era senador por São Paulo, José Serra teve um pavilhão da instituição batizado em seu nome em 2002.

Definitivamente não é ilegal um político ser homenageado por uma instituição privada, mas é moralmente correto? É preciso considerar que, embora privado, o hospital de Barretos depende diretamente da verba pública do SUS para funcionar. No mínimo configura atitude muito personalista de Serra e Lula, como homens públicos que são, terem aceitado a homenagem dos "amigos" sertanejos.

O PT e o PSDB dividindo homenagens personalistas na terra do maior rodeio do Brasil, Barretos —nada mais típico do período de hegemonia social-democrata com cores liberais que vivemos pós-redemocratização. Trata-se de uma época de que poucos se lembram hoje, tamanha a intoxicação com a polarização política atual.

E poucos se recordam também que os sertanejos já foram entusiastas da social-democracia, preferindo tachá-los todos hoje como bolsominions. Perde-se a oportunidade de compreender melhor o Brasil e entender os grandes significados da transição política de milhões de brasileiros para além da acusação e condenação pura e simples.

As homenagens a Serra e Lula aconteceram antes das manifestações de junho de 2013. Desde lá as coisas se esgarçaram de forma tal que Sérgio Reis se tornou um entusiasmado bolsonarista, crítico aos mandatos de PT e PSDB, assim como parte considerável da sociedade brasileira. Reis se radicalizou ainda mais ano passado, tensionando a argumentação no limite da ilegalidade quando se referiu ao STF.

Mas uma coisa não mudou. Sérgio Reis continua dividindo o mundo entre amigos e inimigos. Segundo essa lógica, vale o ditado hipócrita, "aos amigos tudo, aos inimigos a lei". Hoje Reis se diz amigão de Bolsonaro: "Eu sou amigo do Bolsonaro porque era deputado com ele... Só por isso... Ele é palmeirense como eu, a gente assistia a jogo junto... Acompanho o trabalho dele, torço para ele".

Baseado no olhar do compadrio e amizade, Moro e Doria foram muito criticados na entrevista. Ao ser perguntado se votaria nesses candidatos, Serjão foi direto: "O cara que trai não vale nada. Pode ser ministro, pode ser juiz, traiu, danou". Aos olhos de Reis, política é uma relação de amizade e os "traidores" não merecem perdão.

Em sua virulência discursiva, Sérgio Reis almeja se tornar o simétrico inverso de Lula. Mas não rompe com o compadrio, a apologia dos amigos e o personalismo, paradoxalmente tão presentes no lulismo.

A situação nacional é crítica. Geridos por relações de amizade que atravessam valores simbólicos de governantes e governados, parece que seguiremos distantes do dia em que teremos a política construída por todos de forma verdadeiramente republicana. Até quando?

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