Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Oito anos sem o fundamental José Rico, virtuose da voz

Um personagem que vale várias biografias; infelizmente, nenhuma ainda

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No último dia 3 de março fez oito anos que o cantor José Rico morreu, de infarto, aos 68 anos. Ele foi um dos principais cantores da música sertaneja dos anos 1970 e 1980. Ao lado do parceiro Milionário, José Rico levou adiante a influência latina na música sertaneja.

José Alves dos Santos nasceu em São José do Belmonte, Pernambuco, em 1946. Criado na cidade de Terra Rica, no Paraná, adotou o nome artístico de José Rico ainda jovem. Migrante, foi para São Paulo e morou numa favela às margens do poluído rio Tietê.

O cantor sertanejo José Rico - Divulgação

Trabalhou como garçom, pedreiro e pintor de paredes. Conheceu Romeu Januário de Mattos, o Milionário, na lanchonete Ponto Chic, no largo Paissandu, então região do baixo meretrício da capital paulista. O lugar era um ponto de músicos e atores na época.

A sintonia com o novo amigo se deu pelo gosto musical comum. Ambos eram fãs de Caçula & Marinheiro, dupla que gravava canções baseadas na tradição mexicana e paraguaia e agradava os ouvidos sertanejos da época.

Inspirados no programa de Silvio Santos na TV Globo, no qual o apresentador sorteava um carnê milionário, encontraram o nome definitivo da dupla: Milionário e José Rico. Gravaram alguns compactos entre 1968 e 1969, sem sucesso. Em entrevista ao pesquisador Charles Gavin, José Rico disse: "A verdade é que eu nunca cantei sertanejo. Eu cantava forró: Luiz Gonzaga era meu ídolo. E cantava Roberto Carlos também. Depois nessa caminhada eu fui me adaptando". Milionário e José Rico demoraram alguns anos para assumirem o lado sertanejo.

A dupla sertaneja Milionário e José Rico, em 1996 - Divulgação

Em 1973 tiveram uma nova chance na Chantecler, com o LP "De longe também se ama". Era um disco romântico, com muita influência melodramática latina. O sucesso chegou.

A obra de Milionário e José Rico está repleta de canções de gêneros latinos, como guarânias, huapangos, polcas paraguaias, boleros e, sobretudo, rancheiras. Entre as décadas de 1970 e 1980, a dupla conseguiu vários sucessos, como "De Longe Também se Ama", "Ilusão Perdida", "Dê Amor para Quem te Ama", "Sonho de um Caminhoneiro", "Velho Candeeiro", "Estrada da Vida", "Vá pro Inferno com o seu Amor", "Tribunal do Amor", entre vários outros. O maior sucesso da dupla, "Estrada da Vida", é uma rancheira "made in Brazil", composta por José Rico.

Canções como "Rei sem Trono", de 1978, demonstram todo o virtuosismo do cantor. O timbre límpido e delicado da voz de José Rico chamava a atenção. Até um improvável Nelson Pereira dos Santos, o pai do Cinema Novo, se encantou com a dupla. No início dos anos 1980, Nelson filmou a biografia de Milionário e José Rico. Numa das histórias mais surpreendentes da música brasileira, o filme "Estrada da Vida" chegou à China, onde foi exibido com sucesso. Convidados pelos governantes chineses, que na época reconciliavam relações diplomáticas com o Brasil, a dupla fez uma turnê no país oriental em 1986.

Encantado com o país de Mao Tsé-tung, José Rico compôs uma canção em homenagem ao povo chinês e ao governo comunista, lançada no LP "Levando a vida", de 1987. A rancheira "Mensagem de Amor" foi gravada com instrumentos emulando música chinesa. O resultado é uma salada antropofágica de música sertaneja/mexicana/chinesa: "Na expansão imensa do grande universo/ Conheci de perto a cultura chinesa/ Onde percebi que tem algo em comum/ Com o cotidiano de nós brasileiros/ Na vida sofrida que tem sua gente/ Mas são insistentes em construir/ Com ajuda sincera de seus governantes/ Todos vão avante sem desistir".

Dando razão aos boatos que sempre existiram acerca das diferenças pessoais com o parceiro, José Rico separou-se de Milionário logo após lançar o LP "Vontade Dividida", em 1991. Foram então superados pela geração de Zezé Di Camargo e Luciano, Leandro e Leonardo e Chitãozinho e Xororó. Ambos tentaram formar outras duplas, sem sucesso. Retomaram a carreira e lançaram o LP "Nasci para te Amar" em 1994.

José Rico é um personagem que vale várias biografias. Infelizmente nenhuma foi escrita.

Era uma figuraça, que despertava paixões e ódios. Ególatra, tinha consciência de todo o seu potencial como cantor. Nunca lembrava o nome de um fã, de um cantor ou de um colega: chamava a todos indistintamente de "zum".

Vestia-se com roupas exageradas, de estética entre o hippie dos anos 1970 e o fazendeiro abastado, com correntes pesadas, óculos escuros, anéis e joias espalhafatosas. Cantava com a mão no ouvido, cheio de trejeitos. Notório namorador, teve alguns filhos fora do casamento.

E, suprema bizarrice, durante anos gastou rios de dinheiro na construção de um castelo de ares medievais com mais de cem quartos entre Limeira e Americana —cidade onde resolveu ser também empresário de um time de futebol. A obra medieval nunca foi concluída e virou piada entre amigos e inimigos.

José Rico foi um virtuose da voz, um nome fundamental para a história da música sertaneja.

Um mito humano, demasiado humano.

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