Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Gustavo Alonso

Podcast 'Collor X Collor' é competente aula de história

Oitavo e último episódio foi ao ar na semana passada

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tenho uma grande amiga antropóloga, doutora pela USP, que considero a maior leitora do Brasil. Depois de ler muitos livros, artigos, revistas e reportagens de toda sorte, ela veio com esta pérola: "Há diversos textos jornalísticos que dão baile em muitos antropólogos".

Como historiador, digo o mesmo. E essa constatação vale não apenas para a escrita de livros e reportagens jornalísticos como para a cultura oral dos podcasts históricos, com os quais convivemos no mundo digital.

O recente podcast "Collor X Collor", produzido pela Rádio Novelo em parceria com o Globoplay, é uma aula de história. A produtora Rádio Novelo já tinha mostrado toda a sua competência no excelente "Praia dos Ossos", podcast sobre a vida, a morte e o julgamento do assassinato da socialite Ângela Diniz, morta em 1976 por seu namorado. Um grande caso da luta feminista no Brasil, recuperado com brilhantismo, sutileza e perspicácia.

Outro podcast interessantíssimo da Rádio Novelo foi "Retrato Narrado: Bolsonaro". Trata-se de uma das melhores biografias já feitas sobre o capitão fascista que virou presidente. Uma aula de reportagem e construção de personagem.

"Collor X Collor" tem oito episódios e o último foi publicado na semana passada. Agora quem quiser maratonar o podcast poderá fazê-lo sem a crise de abstinência que este colunista viveu ao fim de cada episódio.

O podcast conta a rivalidade entre Fernando e Pedro, dois irmãos que foram atores centrais no primeiro impeachment da Nova República. Foi em 1992 que o irmão menos famoso derrubou o presidente através de denúncias bombásticas e revelações edipianas.

Apresentado pela jornalista Évelin Argenta, "Collor X Collor" é baseado nas fitas que a jornalista Dora Kramer gravou quando escreveu com Pedro Collor o livro "Passando a Limpo: A Trajetória de um Farsante". As entrevistas, que nunca haviam sido publicadas, foram apresentadas com exclusividade na série.

Elas serviram de ponto de partida da pesquisa e de fio condutor do roteiro, e Dora tornou-se consultora do podcast. Uma pena que a qualidade das fitas às vezes dificulte a compreensão de Pedro e Thereza, que falam rápido demais, mas valem muitíssimo como documento histórico.

"Collor X Collor" recupera aspectos fundamentais da história familiar e do país. Pedro Collor geria a Organização Arnon de Mello, um dos maiores conglomerados de mídia do Norte-Nordeste do Brasil, proprietária de jornais, rádios e TVs.

Desde meados dos anos 1970, era uma das primeiras emissoras nordestinas afiliadas da TV Globo. A família Collor fazia parte das elites midiáticas nacionais, tão importantes em épocas pré-internet na construção das esferas de poder nacional na segunda metade do século 20.

Junto com outras elites locais de Alagoas, os Collor construíram a ascensão meteórica através de convenientes alianças. Rosane, mulher de Fernando, era filha de senhores de terra no interior do estado. Pedro casou-se com Thereza, de família de usineiros alagoanos. As trajetórias de Fernando e Pedro, apesar das rusgas edipianas que os faziam disputar o controle da empresa familiar, ilustram os pactos das elites regionais modernas e tradicionais.

A candidatura de Collor à Presidência foi o voo mais ousado de uma família cuja trajetória deveria ter se limitado a ser importante apenas localmente. "Collor X Collor" explica o passo a passo das estruturas de poder do "caçador de marajás", sua ascensão e derrocada, sem abdicar do que Dora Kramer chama de "sociologia do babado", ou seja, a análise cuidadosa das fofocas, picuinhas, surtos ególatras e invejas, tão comuns nas disputas dentro das elites e famílias importantes.

As miudezas de Pedro, Fernando, Rosane, PC Farias, dona Leda Collor (a matriarca) e Thereza são exploradas ao máximo, mostrando a grandeza dos pequenos fatos. Uma aula para muito historiador que só consegue falar de estruturas e grandes modelos interpretativos, sem nunca sujar as mãos com a baixaria da vida cotidiana de todos nós.

"Collor X Collor" relembra fatos que este colunista já havia esquecido. Eu recordava que Leonel Brizola, então governador do Rio de Janeiro, em 1992, havia se posicionado contra o impeachment do então presidente.

Mas o podcast vai além e mostra como havia uma certa cumplicidade, senão política ao menos humana, entre o governador de esquerda e o presidente de direita. Recupera também as curiosas especulações sobre a saúde mental de Pedro Collor, que pararam o Brasil naquela época, transformando um drama familiar em novela.

Como o foco do podcast é a intriga familiar, pouco se fala sobre as oposições da época, de Lula a FHC, que se tornaram tão importantes nos anos seguintes ao impeachment. Tratar das oposições daria outro podcast.

Mais problemático é o fato de que o podcast reproduz a ideia banalizada de que o Plano Collor foi rejeitado pela sociedade desde o início de sua implantação, em 1990. Não foi, pois o principal vilão a ser combatido então era a inflação, razão pela qual o plano foi louvado até por membros insuspeitos das esquerdas e do centro político da época.

O remédio era amargo, mas muitos aceitaram-no sem pestanejar, inclusive o Congresso Nacional. A vilanização do Plano Collor foi uma construção a posteriori, da época do impeachment, não do início do mandato. Mas nada disso compromete o brilhantismo do podcast.

"Collor X Collor" nos ajuda a entender melhor nosso primeiro impeachment, episódio banalizado nos dias atuais, em que se confunde a deposição legal de um presidente com golpe. Curioso pensar que os impeachments de 1992 e 2016, embora pareçam muito diferentes, tiveram ambos seus processos revistos pelo STF. Collor foi inocentado. Dilma também. Como diria Romero Jucá, "com Supremo, com tudo".

Assim tem sido a história de nossos impeachments. Seja na condenação, seja na absolvição.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.