Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Gustavo Alonso
Descrição de chapéu transporte público

Dez anos após junho de 2013, a 'carrocracia' ainda atropela nossa democracia

Pauta do transporte público ainda é secundária e deu poucos avanços em relação ao estopim dos protestos daquela época

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Moro no Recife desde 2015. Aqui, diferentemente de outras praças, as classes médias não usam o transporte público. Este fato torna ainda mais visível a "carrocracia" brasileira, nossa paixão cega pelos automóveis e o consequente desprezo pelo transporte público.

No Recife, os ônibus são para os pobres e o metrô nem sequer chega nos bairros mais elitizados. Por não termos transporte decente, estimula-se indiretamente o carro, o que acaba gerando mais desprezo pela locomoção pública, numa espiral de falta de bom senso.

Imagem de protesto de Junho de 2013 no doc 'O Começo do Avesso'
Imagem da série documental 'O Começo do Avesso', de Paulo Markun e Angela Alonso no Canal Brasil, sobre os protestos de junho de 2013 - Diovulgação/Canal Brasil

É a lógica de quase todas cidades médias e grandes do Brasil desde os anos 1950, quando os automóveis se tornaram a prioridade dos projetos urbanísticos modernizadores. Os efeitos da "carrocracia", termo criado pelo pesquisador Marcelo de Trói, da Universidade Federal da Bahia, a UFBA, são visíveis: ao carro, tudo; ao pedestre, ao ciclista, ao transporte público, quase nada.

Faz dez anos que vivemos os históricos protestos de junho de 2013. A fagulha inicial dos protestos, em Florianópolis e São Paulo, foram as lutas por melhorias e barateamento do transporte urbano das cidades brasileiras.

A revolta popular catalisou-se na capital paulista, onde um curioso conluio entre PT e PSDB —Haddad prefeito e Alckmin governador— juntou-se para podar as manifestações populares e garantir o lucro das empresas de transporte.

Ainda não há um consenso acerca de como devemos chamar aquela intensa movimentação política. Jornadas de Junho? Protestos de rua? Primavera brasileira? Ovo da serpente do bolsonarismo? Várias são as interpretações sobre aquele momento ao mesmo tempo mágico e angustiante. Sim, angustiante, pois é inegável que tudo o que vivemos desde então, para o bem e para o mal, deve-se àquele mês icônico.

Havia na época um famoso meme que dizia: "Quem não estiver confuso é porque está mal informado". A forma dos protestos e suas demandas eram de fato curiosas. Não havia lideranças claras e as manifestações não eram apenas contra o governo, mas também atingiam a oposição.

Não eram só contra as esquerdas, que se tornaram governistas até o osso, mas também contra as direitas, tão elitistas no país.

Uma das bandeiras, hoje tristemente tachada de "moralista", era a luta contra a corrupção, que grassa na política nacional. Junho de 2013 abriu a caixa de Pandora das insatisfações nacionais. Ousamos perguntar por que o transporte, a saúde e a educação públicos não tinham a qualidade "de primeiro mundo" que se via nos estádios da Copa? Quando finalmente teremos direitos básicos contemplados às minorias? Por que nossa polícia segue sendo tão selvagem?

Depois de quase um mês de intensos protestos por todo o país, a então presidente Dilma Rousseff deu as caras no dia 21 de junho prometendo atender algumas demandas e propôs a criação de um Plano Nacional de Mobilidade Urbana.

Praticamente nada foi feito e mesmo assim a reelegemos, sem nenhum ganho na pauta da humanização das cidades. Que esquerda é essa? Não é de se espantar que, desesperados e equivocados, muitos brasileiros tenham buscado o extremo oposto.

Vivemos numa "carrocracia". Quase tudo em nossas cidades gira em torno dos carros, que gozam de irrestrita liberdade de movimentação. De 2013 para cá houve algumas pouquíssimas conquistas na mudança de paradigma urbanístico, como a construção de ciclovias, muito diminutas ainda. E só.

O transporte público continua como sempre esteve, nas mãos de oligopólios que devem pouca satisfação à população. Políticos de esquerda e direita alternam-se sem ousar cutucar os tradicionais donos do poder da mobilidade urbana. Na eleição de 2022 nenhum candidato presidencial levou a sério o tema do transporte coletivo e da reforma urbana.

Recentemente o governo Lula voltou a dar mostras do vício mental desenvolvimentista dos anos 1950 ao defender investimentos na indústria automobilística. Como se as fábricas empregassem hoje tanto quanto na época em que o presidente era sindicalista e como se as cidades brasileiras atualmente suportassem ainda mais carros nas ruas.

Com visão passadista, nas últimas semanas nossas esquerdas se engajaram na defesa antiquada "do petróleo é nosso". Alas hegemônicas no governo querem explorar petróleo na foz do rio Amazonas antes de propor qualquer plataforma verde que apontaram na campanha eleitoral, rifando a ministra Marina Silva. Tudo isso põe o Brasil em rota de atraso com o mundo do século 21.

Alguma surpresa? Até hoje petistas têm dificuldade de entender o que foi 2013, e muitos veem naquele período apenas o surgimento do fascismo brasileiro que querem combater com a mesma visão equivocada que ajudaram a forjar aquela aberração. E tome mais "carrocracia".

O ano de 2013 segue vivo. Ainda nos resta democratizar nossa democracia. Entre tantas bandeiras, por que não recomeçar com a do transporte público? Seria uma grande homenagem às origens daquele momento mágico de dez anos atrás. Enquanto carros forem mais atraentes que o transporte público, viveremos numa "carrocracia". E hoje a "carrocracia" é uma das principais limitações de nossa democracia.

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