Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Gustavo Alonso

Podcast biográfico de Clodovil ajuda a entender as transformações do Brasil

'Clodovil do Avesso' encara contradições do costureiro e apresentador, mas se prende a um discurso identitário atual

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Biografias bem escritas são sempre ótimas janelas para se conhecer uma época e seus dilemas. Através da trajetória de um personagem crucial, podemos entender melhor os dilemas não apenas do sujeito, mas também de toda uma época.

O estilista e apresentador Clodovil Hernandes - Eduardo Knapp/Folhapress

Recentemente, a grande produtividade de podcasts no país resgatou para o áudio o mundo das biografias. E trouxe algumas pérolas que merecem destaque, como o recente "Clodovil do Avesso", sobre o famoso costureiro morto em 2009.

"Clodovil do Avesso" foi produzido pela Elle Brasil, com reportagem, roteiro e narração de Patricia Oyama e Gabriel Monteiro. Esta semana foi publicado o quinto episódio, o penúltimo de seis prometidos. Através da trajetória do costureiro aprendemos mais do que frivolidades e banalidades. Clodovil é nossa lente para vermos o Brasil.

A questão da homossexualidade, claro, não poderia faltar. Vivida de forma paradoxal pelo costureiro, o podcast apresenta essas questões em profundidade, com boa quantidade de fontes históricas, sempre bem documentadas.

Clodovil nunca foi politicamente correto, e sua personalidade irascível sempre foi muito questionada. E continua sendo assim. Para os identitários atuais, entre os quais parecem se enquadrar os idealizadores do podcast, Clô segue sendo uma esfinge. Suas ambiguidades e paroxismos devoram as cabeças lineares daqueles que esperam uma única forma de viver a homossexualidade.

Em diversos momentos de sua trajetória Clodovil foi misógino, racista e até homofóbico. Reativo às manifestações públicas em defesa da pauta homossexual, o costureiro rejeitava a passeata do orgulho LGBT.

Dizia ter vergonha de ser homossexual e se pudesse seria um machão perfeito. Esse era Clodovil, um personagem que, aos olhos de hoje, sambaria na incompreensão dos identitários mais intransigentes.

Em diversos momentos do podcast essa incompreensão dos idealizadores resvala num certo julgamento do costureiro, como se apenas houvesse uma forma de viver a homossexualidade, a atual.

É um problema de nossa época: estamos cada vez mais presos no discurso libertário atual, intransigente com outras temporalidades. O passado é sempre inferior. Outras formas de viver a questão homossexual são vistas sempre como mais reprimidas.

Outro problema do podcast são alguns áudios de qualidade técnica bem baixa, como a entrevista com Leão Lobo e a leitura de algumas entrevistas de Clodovil realizadas de forma um tanto anódina. Embora muito reveladoras e precisamente escolhidas, o tom da leitura prejudica o ponto abordado.

Outra falha que merece crítica é o pouco uso de falas de seus concorrentes, especialmente Ronaldo Ésper, que aparece apenas nos primeiros episódios sem ser explorado como poderia.

Mas nada disso tira o brilho da pesquisa do podcast disponível nas principais plataformas de streaming. Para além da questão homossexual, ganhamos o entendimento largo sobre a luta das liberdades individuais e coletivas no Brasil do século 20.

Quando se tornou um comunicador, Clodovil foi censurado não pelo que dizia no rádio em 1968, mas pelo seu tom de voz que, supostamente, segundo os censores, induzia maus costumes à sociedade. Ganhamos assim o entendimento de que a censura não foi apenas política no sentido estrito do termo, mas larga e disseminada, cultural e comportamental.

Aprendemos também sobre o impacto do prêt-a-porter no mundo da moda ocidental e a transformação da indumentária das multidões. Clodovil, um costureiro à moda antiga, tentou até se engajar na moda massiva, mas, devido a dificuldades até governamentais, nunca foi capaz de transformar sua produção artesanal em fábrica industrial.

Através da biografia do costureiro-apresentador ainda aprendemos muito sobre o mundo da televisão brasileira, já que Clodovil flanou por quase todos os canais abertos do país. Sua personalidade acintosa gerou várias inimizades, entre elas a de Marília Gabriela, com quem gravou o icônico programa TV Mulher por dois anos na Globo da década de 1980. Marília negou dar seu testemunho ao podcast, mas uma fala da jornalista colhida em arquivo supriu tudo que se poderia esperar de mais instigador.

Personagem múltiplo, Clô virou deputado federal em 2006, abrindo um novo momento em sua vida, três anos antes de morrer. Muitas de suas ambiguidades políticas são abordadas no podcast.

Ele era contra cotas raciais, mas a favor da união de pessoas do mesmo sexo. Contra o aborto e contra a liberação das drogas, mas também contra qualquer intervenção militar. A favor da redução da maioridade penal, mas contra a pena de morte. Era de esquerda ou direita? Difícil colocá-lo em uma caixa.

Este era Clodovil Hernandes, o primeiro deputado assumidamente homossexual da história do país, um enigma que não pode ser esquecido, mas tampouco subestimado.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.