Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Helen Beltrame-Linné​
Descrição de chapéu machismo

Marilia Mendonça, 'O Exterminador do Futuro' e o machismo de sempre

Premissa do filme era dar protagonismo à personagem feminina, vivida por Linda Hamilton

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Quase todas as pessoas que conheço perderam uma amiga na semana passada. Marília Mendonça, morta num acidente aéreo aos 26 anos, era uma "mana" com um combo de qualidades valioso: sororidade e deboche. E levou esse eu lírico feminino ao pódio de um gênero musical historicamente machista e dominado por homens.

Marília começou a carreira de compositora aos 12 anos e passou anos escrevendo canções de sucesso para homens. E não apenas cantores do sertanejo: "Muito Gelo, Pouco Whisky", de Wesley Safadão, por exemplo, é de autoria de Marília.

Foram sete anos escrevendo para vozes masculinas até finalmente cantar suas próprias músicas no EP homônimo de 2014. O resto é história: sucesso atrás de sucesso, culminando no fenômeno cultural que fez o Brasil chorar por sua morte precoce no último dia 5.

Quando soube da trajetória de Marília, me lembrei do "Exterminador do Futuro" (1984). Pouca gente sabe da história por trás do filme que catapultou a carreira de Arnold Schwarzenegger como o ciborgue que volta ao passado para eliminar uma mulher que daria luz ao líder da resistência. O fato de você, leitor, provavelmente não reconhecer o nome de Linda Hamilton, que interpreta a personagem feminina, evidencia que seu estrelato nunca chegou aos pés do colega de elenco masculino.

Desde a origem, o projeto do diretor James Cameron ("Titanic", "Avatar") tinha a premissa de robôs que voltam ao passado. Contudo, o protagonismo do filme era da mulher perseguida, Sarah Connor. Resumindo o roteiro original em uma linha: era a história de uma mulher que luta contra o sistema, representado pela empresa Skynet. O exterminador de Schwarzenegger, em outras palavras, era um pau mandado da empresa.

Quem conta essa história é a produtora Gale Anne Hurd ("Armaggedon", "Walking Dead"), que também assina o roteiro de "Exterminador" ao lado de Cameron, com quem foi casada por muitos anos. Ninguém queria financiar o projeto e, cansados de ouvir que não haveria público para um filme sobre uma heroína em fuga, eles decidiram mexer na trama e colocar em primeiro plano o ciborgue, que ganhou o título do filme.

Na primeira versão do roteiro, Sarah Connor era descrita logo nas primeiras páginas: "19 anos, pequena com traços delicados. Uma beleza não absoluta, acessível. Ela não para uma festa quando chega, mas você gostaria de conhecê-la melhor. Sua aparente fragilidade guarda uma força que ela nem sabe que existe."

Volto a Marília Mendonça e uma singela entrevista que deu em 2015 quando lançou seu primeiro álbum. "A imagem que elas [as cantoras] estavam passando no sertanejo era de fragilidade, e isso não é respeitado pelo mercado", disse à época. "Agora está mudando. Estão aparecendo mais mulheres porque elas estão se impondo como homens."

Sarah Connor está aí para comprovar que não é de hoje que o "mercado" —essa entidade mitológica sem rosto— rejeita dar protagonismo para a fragilidade feminina. Uma fragilidade que, tomando emprestado de Cameron, guarda uma força que a gente nem sabe que existe.

Mas ouso dizer que a artista brasileira se enganou ao achar que se impôs como homem. Com o "feminejo", Marília literalmente injetou a mulher no sertanejo. E foi ainda mais longe com o fenômeno cultural da "sofrência". Diz o ditado machista que mulher gosta de sofrer e a cantora colocou os pingos nos is: "de mulher para mulher, supera".

Naquela entrevista de 2015, uma das primeiras que deu para a grande mídia, ela declarou: "A minha pretensão não é ser famosa, e, sim, passar minha verdade. Porque sempre me falaram que minha verdade era ruim e que eu teria que mascarar o que eu sou para não assustar o povo. Porque eu bebo, eu como, eu falo demais. Sempre me disseram que assim não daria certo. Mas é isso que eu quero".

A partida precoce de Marília é a perda de um ícone feminino que foi capaz de transformar fraquezas (traição, cobiça ao homem da outra, sofrer por amor, relacionamento abusivo...) em força. Clarice Lispector já dizia que "nunca sabemos qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro". E a jovem goiana fez de seus "defeitos" os pilares de um prédio imenso que o Brasil todo era capaz de ver.

Sobre o imbróglio que se instaurou nos últimos dias sobre a sua aparência física, Marília já tinha dado a resposta em vida: "É por que eu tô magra? Não, não é! É porque eu tô foda-se."

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.