Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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Carlos Segundo, diretor de 'Sideral', conhece a potência dos encontros

Curta, que é pré-indicado ao Oscar e concorreu em Cannes, chamou atenção à carreira impressionante do cineasta paulista

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Se você procurar "Carlos Segundo" no Google encontrará basicamente ocorrências sobre o rei problemático que governou a Espanha até 1700. Mas o anúncio da pré-lista dos indicados ao Oscar 2023 na semana passada colocou no radar um homônimo brasileiro do monarca conhecido como "O Enfeitiçado".

Carlos Segundo, diretor paulista que cresceu em Uberlândia, escreveu, dirigiu e montou "Sideral", um dos 15 curtas-metragens a serem avaliados pelos votantes da Academia para definir os cinco finalistas que irão participar da cerimônia de entrega da cobiçada estatueta.

menino olha para lamparina
Cena do curta-metragem 'Sideral', de Carlos Segundo, que foi exibido em Cannes - Divulgação

Pode impressionar que Segundo, um virtual desconhecido do público brasileiro, tenha vencido quase 200 filmes para chegar à final, mas "Sideral" vinha trilhando um caminho excepcional em festivais pelo mundo afora, inclusive concorrendo à Palma de Ouro no Festival de Cannes.

A carreira do diretor impressiona ainda mais: além de documentários, são pelo menos dez curtas de ficção realizados de forma independente desde 2008. Praticamente todos exibidos em festivais internacionais pelo mundo, o que denota a disposição incansável de Segundo em fazer inscrições, mas principalmente a capacidade de seus filmes em se comunicarem com espectadores de outras culturas.

"Sideral" retrata o impacto do lançamento do primeiro foguete tripulado brasileiro numa pequena família do Rio Grande do Norte, onde Segundo vive há alguns anos atuando como professor universitário. Filmado em três dias no final da pandemia, custou R$ 25 mil, oriundos da Lei Aldir Blanc.

É um filme que reflete dois traços marcantes do diretor: o interesse pela natureza humana e a atenção ao detalhe. Segundo é um diretor consciente da potência dos encontros com grande habilidade na construção dramática rápida combinada com finais interessantes —elementos essenciais para o formato ingrato do curta-metragem.

Tipos desajustados, ou que fogem do padrão, são tema de interesse desde seus primeiros curtas. "26 de Dezembro" (2008) acompanha um Papai Noel no dia de descanso em seu pequeno apartamento antes de vestir a próxima fantasia. "Vitrines" (2010) traz um sujeito solitário cuja existência gira em torno de manequins de plástico com os quais constrói sua fantasia. "Poeira de Prata no Escuro do Quarto" (2014) lida com o fotógrafo de uma delegacia de homicídios que não consegue sorrir para uma foto. "Big Bang", seu curta mais recente, premiado com o Leopardo de Ouro no Festival de Locarno, retrata um homem com nanismo que trabalha como limpador de fornos —e ironicamente será salvo num acidente justamente por sua forma diminuta.

Os personagens de Segundo tem outra coisa em comum: falam pouco. A economia de diálogos é constante em sua obra e fica evidente até em "Cheirosa" (2009), cujo clímax é justamente uma conversa de semáforo entre a espirituosa motorista de uma Brasília velha e um motoqueiro engraçadinho. Esse curta, aliás, parece inaugurar um segundo braço na filmografia do diretor: com o protagonismo deslocado para o feminino, ele acessa algo mais doentio (ou menos normativo).

"Ainda Sangro por Dentro" (2016) vai na jugular da questão feminina ao abordar estupro, aborto, luto e vingança de uma forma absolutamente radical —que inclui até um feto abortado guardado numa jarra no armário da cozinha. "Subcutâneo" (2018), por sua vez, se debruça sobre a exploração de uma dicotomia interessante sobre a pele no contexto de vida de uma depiladora. "De Vez em Quando Eu Ardo" (2020) inova com o protagonismo feminino negro e envereda ainda mais a fundo na não conformidade, misturando investigação artística com inquietação religiosa. Em comum aos dois últimos, o convívio de filhas que se tornam cuidadoras de seus progenitores (o pai em "Subcutâneo" e a mãe em "De Vez em Quando").

A indicação de "Sideral" para o Oscar coroa um trabalho de formiga que já dura quase duas décadas e consolida Carlos Segundo como um cineasta interessado em fabulações capazes de "reorganizar nosso mundo caótico e disforme num espaço-tempo único" ("Connexion Munique", 2013). Em outras palavras: alguém que sabe fazer cinema.

Mesmo se a estatueta não vier, torço para que a indústria lhe permita dar o passo em direção ao longa-metragem. Acho que não estou sozinha em acreditar que Segundo merece uma hora adicional de película para contar suas histórias no formato longo.

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