Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Helen Beltrame-Linné​
Descrição de chapéu Filmes

Série da HBO Max, 'Irma Vep' é um passeio pelos bastidores do cinema

Alicia Vikander vive a nova versão da protagonista na atração de Olivier Assayas que já foi tema de filmes no exterior e no Brasil

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Uma série de 2022 sobre um filme-seriado de 1915 que já havia sido objeto de um longa-metragem do mesmo diretor em 1996. Pode parecer confuso, mas "Irma Vep", criada por Olivier Assayas para a HBO Max, vale o mergulho metalinguístico.

Lançada no Festival de Cannes deste ano, a série é um passeio delicioso por Paris e pelos bastidores da indústria cinematográfica em toda sua complexidade.

Do drinque refinado no restaurante cinco estrelas para o café em copo de papelão no set de filmagem. Da elegância andrógina diante das câmeras das premières até a solidão dos quartos de hotel, passando pelos ataques histéricos de atores pouco convencionais. Em oito episódios, Assayas consegue revelar a mistura inusitada que compõe o fazer cinematográfico: glamour e tédio, fluidos corporais e instantes sublimes.

Cartaz da série "Irma Vep", criada por Olivier Assayas
Cartaz da série 'Irma Vep', criada por Olivier Assayas - Divulgação

Ainda que seja desnecessário para desfrutar a nova "Irma Vep", aproveito a chance para falar da obra que está na origem dos dois trabalhos homônimos de Assayas. "Os Vampiros", um "filme em série" composto de dez partes, foi criado na década de 1910 por Louis Feuillade, à época diretor artístico do respeitável estúdio Gaumont. No seu lançamento, a obra foi acusada de glorificar o crime e, inclusive, censurada por atentar contra os bons costumes.

Mas o sucesso de público viria em seguida, em muito capitaneado por Musidora, atriz que interpretava Irma Vep, uma personagem sedutora de moralidade dúbia que a consagraria como a grande vedete do cinema francês.

Com os anos, viria também a consagração artística: "Os Vampiros" desenvolveu técnicas de suspense que seriam depois adotadas por mestres como Fritz Lang, Hitchcock e Buñuel, para citar alguns.

Irma Vep, por sua vez, tornou-se inspiração para diversas obras derivadas. No Brasil, muitos devem se lembrar da lendária comédia "O Mistério de Irma Vap", com Marco Nanini e Ney Latorraca nos papéis principais —que foi dirigida por Marília Pêra com base na peça homônima de Charles Ludlam e ficou em cartaz durante anos na década de 1980.

No filme homônimo dirigido por Assayas em 1996, Irma Vep era interpretada por Maggie Cheung, mais conhecida como musa de Wong Kar-wai, e que foi casada com Assayas.

Na nova série, o papel foi dado a Alicia Vikander, uma atriz talentosa que não era tão bem aproveitada desde seu papel em "A Garota Dinamarquesa", que lhe rendeu um Oscar em 2016. Sua presença em cena é cativante e vê-la deslizar pelos cenários com seu colant vampiresco é um prazer que recomendo ser desfrutado na tela grande.

Outra estrela inegável da série é Vincent Macaigne –ele próprio um premiado realizador de curtas na vida real–, que interpreta o diretor fictício René Vidal com um repertório surpreendente de tons e estados de espírito.

Os elogios podem ser estendidos a colaboradores regulares de Assayas que completam o elenco: Nora Hamzawi, extremamente hábil como a diretora-assistente Carla, que tenta navegar as águas turbulentas da filmagem; Jeanne Balibar como a figurinista charmosa e paqueradora Zoe; e Lars Eidinger no papel do repulsivo Gottfried, que toma a filmagem como um furação corrosivo.

A modelo Devon Ross é outra que merece menção, ao desempenhar com tranquilidade o papel de Regina, a assistente pessoal de Mira que é, acima de tudo, uma cinéfila e diretora principiante. A crença de sua personagem no cinema como magia vai permitir uma transição formal extremamente interessante para a série, que passa a explorar a distorção de imagens e a forma cinematográfica em todo o seu potencial imagético. É algo que, combinado com a trilha sonora de Thurston Moore, pode se tornar uma experiência sensorial inédita para muitos espectadores de streaming.

Outro ponto que se destaca na produção é a elegância absoluta da direção de Assayas. E não me refiro apenas ao excepcional figurino de Jürgen Doering ou à coreografia de cena do genial Angelin Preljocaj (que aparece em alguns episódios em ação fazendo o que faz de melhor: desenhando os movimentos de Irma Vep).

O cuidado de Assayas com detalhes se estende ao roteiro, que é extremamente bem decupado e revela um verdadeiro tour de force do francês para dar conta de todas as tramas e linhas paralelas que a série aborda. Ainda que, no nível das cenas, alguns diálogos incomodem por serem mera recapitulação didática de pontos da trama original do filme de 1915.

Incomodam porque os fatos pouco interessam. "Irma Vep" é uma obra sobre performance. Obviamente da atriz Mira, que faz isso profissionalmente e também nas suas horas vagas. Mas, especialmente, do diretor René Vidal, que é obrigado, ele mesmo, a desempenhar essa função no trato com seus atores e sua equipe –ainda que ele falhe ocasionalmente, deixando seu sofrimento profundo transbordar para fora da sala de terapia.

Para alguém que trabalha no audiovisual e se interessa profundamente pela forma pela qual se conta uma história, é muito interessante ver a inquietude de um artista como Olivier Assayas, que continua se desafiando e buscando alguma coisa que nem ele bem sabe o que é.

"Irma Vep" é uma anomalia no mundo do streaming. Porque é difícil de classificar. Porque é cinema dividido em partes. Porque Assayas não presta contas para o mundo, mas para si mesmo. Porque ele, como, como declarou em Cannes, está perdido. E nós adoramos isso.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.