Na semana passada a revista britânica Sight and Sound causou rebuliço ao eleger "Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles", de 1975, como o melhor filme de todos os tempos.
O longa de Chantal Akerman é um prato cheio para reflexão, resta escolher a melhor moldura. Seria possível, por exemplo, falar dele ao lado de "Cléo das 5 às 7", de Agnès Varda, outro filme que assumiu o protagonismo em tempo real de mulheres para quem o tempo parece estar se esgotando.
Contudo, outra ideia me veio à mente —pensar "Jeanne" no contexto de um filme recente, "Tár", de Todd Fields, tido por muitos como grande promessa para o Oscar de 2023, sobretudo na categoria melhor atriz. É de Cate Blanchett a personagem que dá título ao filme, Lydia Tár, uma ficcional maestro americana que teria galgado a disputadíssima posição de regente da Filarmônica de Berlim.
Blanchett atua com um elenco essencialmente feminino que inclui a alemã Nina Ross e a francesa Noemi Merlant, ambas excelentes em seus papéis.
Infelizmente, ao lado dessas colegas de cena, a personagem construída por Blanchett, sob a batuta do diretor Field, resvala no artificial, em diversas cenas que soam ensaiadas demais e afetadas por uma pompa que ultrapassam até a personalidade mais pretensiosa que se pudesse outorgar à personagem central.
É justamente na artificialidade de Tár que reside a maior fraqueza do filme —sua pretensão, que fica evidente pela opção do diretor em exibir os créditos de encerramento na abertura. E que se perpetua no desenrolar das quase três horas de duração em diálogos impenetráveis que reforçam o estereótipo de que a música clássica é de um rebuscamento intelectual reservado a poucos.
Por que então compará-lo a "Jeanne", filme de Akerman que retrata o dia a dia prosaico de uma mulher, dona de casa, mãe e prostituta?
Ora, "Tár" também retrata, a seu modo, o cotidiano de uma mulher que desce ao inferno, ainda que sua vida tenha muito mais glamour, envolvendo jatinhos particulares, a suntuosa sede da orquestra e sua espaçosa residência concretista.
Mas o que chamou atenção foi a reflexão que os dois filmes propõem sobre o tempo. "Jeanne" é valioso justamente pelo que nos ensina sobre o ancoramento no presente, o que é forçado ao espectador de forma tão contundente que a rotina da personagem faz raiz na experiência de visionamento e nos faz sensíveis às pequenas notas dissonantes quando o trem se descarrilha.
Pois bem, a personagem de Tár tem uma fala muito similar à da diretora belga quando fala sobre o trabalho de regência —"tempo é o essencial". Isso é dito num contexto que sugere que o prazer da personagem reside justamente em fazer o tempo parar pela forma como posiciona sua segunda mão ao reger músicos.
Contudo, Field opta por oferecer essa declaração da personagem logo nos primeiros minutos de filme, quando o espectador ainda não tem elementos concretos para avaliar o que ela diz. Será que a história de Tár precisa mesmo da carapuça formal construída pelo diretor?
A resposta talvez esteja, mais uma vez, no ponto de vista. Existe algo de essencialmente feminino na forma como Jeanne é retratada —a câmera parada, sem melindres, a enxerga com generosidade e atua como testemunha da sua existência mecânica e singela.
Para além da pobreza cinematográfica com que é retratada, a personagem de Field é masculinizada ao extremo, tanto no figurino sóbrio e na postura anódina, quanto em momentos chave como o diálogo em que se identifica como pai de sua enteada. Como se fosse necessário se transformar em homem para alcançar poder. E que talvez o tenha sido para essa mulher que encabeça a Filarmônica pela primeira vez na história. Mas é justamente da exploração desse elemento que sentimos falta.
Não se trata aqui de obrigar ninguém a mostrar nada. Mas o que Field esconde revela muito sobre o filme que pretendeu fazer. Não é permitido ao espectador ter acesso a interações íntimas de Tár com seu círculo de afetos. Field escolhe mostrar somente um ataque injusto de manipulação de falas descontextualizadas.
Fica difícil se aproximar do funcionamento interno da personagem: ela sempre foi abusadora ou foi corrompida pelo poder? Seria ela uma personagem perversa, solitária ou assombrada?
O curioso é que depois de ver "Tár", tive vontade de voltar a ele. Talvez seja a abstinência de protagonistas femininas, mas há algo de cativante na figura caleidoscópica e complexa de Tár.
O filme certamente tem méritos que ainda não consigo colocar em palavras —como disse uma amiga, "quanto maior o orçamento, maior a minha raiva se o filme é ruim".
Ruim é exagero, mas é evidente que Field teve um orçamento milionário à sua disposição —o custo de "Tár" não foi divulgado, mas o último filme do diretor custou US$ 26 milhões, em 2006. Enquanto que Akerman se virou como pôde para rodar o filme que agora é apontado como o maior da história.
Anos atrás, ela chegou a declarar: "Todos dizem que meu filme os influenciou, e eu não ganhei um centavo. Quero meu percentual".
Agora seria, quem sabe, seu momento de colher frutos. Mas a belga infelizmente não está aqui para recebê-los —Chantal Akerman morreu em 2015. Vão-se as pessoas, ficam os filmes. "Jeanne Dielman" tem muito a nos ensinar sobre o fazer cinematográfico.
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