Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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Adirley Queirós faz 'Mad Max' brasileiro com 'Mato Seco em Chamas'

Diretor de 'Branco Sai, Preto Fica' se une a Joana Pimenta em filme que capta Brasil à beira da explosão

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O fogo parece ter se tornado um elemento recorrente no cinema nacional recente. Desde "Dia do Fogo", de Maria Augusta Ramos, curta que explora a chama em sua versão destruidora de florestas, até longas que trabalham com outras significações como "Fogaréu", de Flávia Neves, exibido no Festival de Berlim, e "Carvão", de Carol Markowicz, lançado no Festival de Toronto e recentemente premiado no Festival do Rio.

Chama atenção nessa safra de filmes incandecentes "Mato Seco em Chamas", de Adirley Queirós e Joana Pimenta, exibido em Berlim e em Toronto e vencedor da competição internacional do prestigioso Cinéma du Réel.

cena de filme
Andreia Vieira (centro) em cena do filme 'Mato Seco em Chamas', dirigido por Adirley Queiroz e Joana Pimenta e exibido no Festival de Berlim 2022 - Divulgação

Queirós, que sempre teve o fogo como componente importante de suas obras, neste último trabalho o explora também em seu potencial de perigo iminente e com isso constrói uma das mais contundentes reflexões sobre o Brasil hoje, às vésperas das eleições que definirão os rumos da nossa história.

Uma sinopse de "Mato Seco" seria: uma gangue de mulheres cria uma refinaria ilegal na favela do Sol Nascente, na Ceilândia, nos arredores de Brasília. Sob constante ameaça de gangues rivais e da fiscalização das autoridades, as "gasolineiras" (Joana Darc Furtado, Léa Alves da Silva e Andreia Vieira) tentam tirar seu sustento do comércio ilegal de gasolina.

Contudo, isso está longe de explicar este filme que continua o cinema muito próprio que Queirós vem construindo em sua carreira e que alcançou um público maior em "Branco Sai, Preto Fica", agora disponível na Netflix. "Mato Seco" propõe uma fabulação que é, de certa forma, tão possível quanto a distopia que vivemos hoje —e nisso se aproxima de "Bacurau", de Kleber Mendonça Filho. Mas dele se distingue drasticamente pela sua forma híbrida que mistura documentário e ficção científica.

"Mato Seco" parte de uma provocação crítica do diretor sobre o slogan governamental "o petróleo é nosso". Se fosse mesmo, declara Queirós, o slogan seria "o petróleo é de nóis". E é a partir do tensionamento dessa outra utopia que ele constrói seu filme.

O que ele propõe é uma etnografia da ficção. Nas palavras do diretor: "Um fio narrativo que será usado por personagens reais que internalizam situações, acreditam naquilo, e filmamos como se fosse um documentário. É isso".

É isso, só que não é.

Nascido em Goiás, filho de camponeses, Queirós chega aos sete anos em Ceilândia, a cidade satélite de Brasília criada pela Campanha de Erradicação das Invasões (CEI) seis anos antes para alojar os mais de 80 mil habitantes que viviam em ocupações irregulares próximas ao centro da capital. Depois de uma carreira como jogador de futebol de segunda e terceira divisão, Queirós ingressa na faculdade e passa a explorar a problemática desse território como motor de sua investigação cinematográfica.

Em comum a todos os seus filmes está o trabalho principalmente com não atores e a proposta de novas utopias para lidar com a dura realidade daquele território. E o ritmo de produção: feito por uma equipe principal "que cabe num carro", "Mato Seco" foi rodado ao longo de 18 meses.

O processo de criação consiste em trabalhar junto com moradores da região para criar o mundo que o filme irá habitar: de parafuso em parafuso, de pedaço de latão em pedaço de latão. Porque não se trata aqui de realismo. A brincadeira de Queirós é outra, como nos mostrava o personagem cadeirante de "Branco Sai", que diante de um microfone no bunker constrói toda uma narrativa da vida que se passa, passou, passará ou passaria lá fora.

Numa entrevista de 2015, Queirós havia declarado que seu sonho era fazer "Mad Max" e a impressão que dá é que realizou esse sonho.

"Mato Seco" bebe no filme australiano, mas não para mimetizá-lo, e sim construir uma saga autêntica das suas "gasolineiras" num pano de fundo feito de poeira vermelha do cerrado e negrume do "nosso" petróleo. E nisso se destaca a colaboração extremamente bem-sucedida com Joana Pimenta.

Se Queirós já havia mostrado seu talento para criar espaços fílmicos —isto é, espaços físicos, mas também temporais e emocionais— a codiretora e fotógrafa entrega uma proposta de imagem que não resvala numa ilusão de imersão que já foi moda no cinema pátrio. Ao manter uma distância sóbria de observação, Pimenta consegue captar as personagens (quase que exclusivamente femininas) em sua ferocidade de sobrevivência e também num registro de afeto que foge da armadilha do melodramático.

Se o diálogo tarda um pouco a aparecer, quando o faz vem com falas rápidas, com gírias, sotaque e erros de português. Os personagens de Queirós têm liberdade gramatical. Seu cinema é uma arte feita a serviço da cultura daquele território, em favor daquelas pessoais reais que, por meio da arte, serão capazes de realizar o seu desejo.

Um exemplo de cena que capta a potência desses corpos é o baile feito dentro de um ônibus, ressignificando o meio de transporte coletivo de massa de mão de obra numa espécie de espaço de integração popular. Outro elemento poderoso é a fictícia campanha do "Partido do Povo Preso", inserida no filme depois da prisão de Lula. A ironia de falar disso hoje, a três dias da eleição, não é para os corações fracos.

Nesse contexto, é também extremamente tocante assistir a uma das imagens mais marcantes do filme: um plano documental feito por Pimenta diante do Congresso Nacional após o anúncio da vitória de Bolsonaro quatro anos atrás. Um plano épico e histórico pelo que registra da dinâmica de representação dos eleitores do atual presidente, e pelo que pode nos ensinar.

É justo dizer que as duas horas e meia de duração do longa se sustentam pelo carisma das personagens, mas também pela fotografia que capta aquela atmosfera e pela impressionante montagem de Cristina Amaral, que consegue estabelecer uma coerência interna ao filme.

Voltando ao fogo, ele aparece aqui em sua função catártica como em filmes anteriores de Queirós. E é significativo que se assista ao desmonte do carro policial antes da incineração: infelizmente, não podemos nos dar ao luxo de queimar tudo.

Mas, mais do que isso, o que fica na pele de quem assiste é um perigo constante do "pegar fogo", que se apura a cada cigarro fumado insistentemente pelas personagens do lado do petróleo.

Ninguém retratou tão bem uma nação à beira da explosão como o fazem Queirós e Pimenta. Mais do que o sofá que queima o final de "Branco Sai", estamos aqui num verdadeiro barril de pólvora.

"Mato Seco em Chamas" é uma espécie de filme alienígena no cenário do audiovisual brasileiro —e talvez por isso sejam maiores as suas chances de dar conta da realidade que vivemos no Brasil hoje. Com ele, Adirley Queirós confirma seu domínio absoluto do cinema como linguagem e se consolida como um dos grandes cineastas brasileiros em atividade.

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