Hélio Schwartsman

Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".

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Hélio Schwartsman
Descrição de chapéu

Eu ouvi Yanni

Disputa prova que não precisamos mais do que uma bobagem para nos dividir em grupos arbitrários

Arquivo de áudio causa discórdia: você ouviu 'Yanni' ou 'Laurel'?
Arquivo de áudio causa discórdia: você ouviu 'Yanni' ou 'Laurel'? - Eric Baradat/AFP

Na controvérsia que está dividindo o mundo, eu ouvi Yanni. As más notícias são que pertenço a uma minoria (pesquisa feita nos EUA indica que os yannistas são 47%, contra 53% de laurelianos) e estou objetivamente errado (o autor da vocalização original pretendia dizer Laurel). A boa é que tenho ouvidos de jovem. Captei o som numa frequência mais alta, o que é sinal de que meu aparelho auditivo não está tão desgastado quanto se poderia esperar para quem já passou dos 50.

Há duas coisas interessantes a observar aqui. A primeira é que a disputa prova que não precisamos mais do que uma bobagem, como a interpretação, sem consequências práticas, de um som, para nos dividir em grupos arbitrários que podem chegar às raias da animosidade. Quem tem interesse nisso deve conferir os trabalhos do psicólogo Henri Tajfel.

A segunda é que a polêmica funciona como um experimento natural corroborando a tese de que nossas percepções não constituem um registro fiel de estímulos externos, como se pensava classicamente, mas são em larga medida moldadas por expectativas que o cérebro já tem, o chamado controle “top down”. 

Com efeito, nossos cérebros são máquinas de fazer previsões que buscam imprimir um sentido à massa de dados que lhe chega a cada instante. Percepção, cognição e ação são muito mais difíceis de distinguir uma da outra do que se supõe.

Basta que haja um elemento neurologicamente ambíguo, a exemplo do som Yanni/Laurel, para que pequenos acidentes, como a condição dos ouvidos, a qualidade dos alto-falantes e mesmo preferências pessoais (o músico Yanni ouviu “Yanni”), definam como o cérebro o interpretará.

Se isso ocorre até com um conjunto “objetivo” de ondas acústicas, a coisa fica muito pior quando nos deparamos com ideias abstratas que são, por definição, muito mais abertas a interpretações. Aí já não parece tão absurdo descrever a realidade como uma alucinação controlada.
 

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