Em tempos em que todos têm muitas certezas, nada melhor do que cultivar a dúvida. A historiadora Jennifer Michael Hecht oferece em “Dúvida” um guia metódico de como fazê-lo.
O livro pode ser descrito como uma enciclopédia do ateísmo. Ao longo de quase 600 páginas, a autora aborda desde a doutrina caravaka, escola de pensamento hindu que negava não só os deuses como também a reencarnação, até Einstein, passando por tudo o que existe no meio disso —o que não é pouca coisa.
O que torna o trabalho de Hecht um pouco diferente de outros títulos sobre a descrença é que ele não se limita a analisar os iconoclastas de sempre, como Epicuro, Nietzsche e Marx, mas também se debruça sobre figuras e textos religiosos que levantaram dúvidas sobre alguns aspectos dos credos então estabelecidos. É assim que Buda, santo Agostinho e o próprio Jesus ganham espaço generoso em “Dúvida”.
Gostei particularmente das páginas em que a autora tenta entender como dois textos profundamente antidogmáticos e até mesmo niilistas, o “Livro de Jó” e “Eclesiastes”, foram parar na Bíblia. Não encontra muita explicação teológica. Uma hipótese é que, apesar do tom antirreligioso, eram escritos fortes e bonitos demais para ser excluídos do cânone.
Outro ponto alto de “Dúvida” são os trechos em que Hecht destaca o batalhão de mulheres, infelizmente pouco conhecidas, que contribuiu para a causa do ceticismo religioso. São nomes como Harriet Taylor, as irmãs Mendelssohn, Anne Newport Royall, Harriet Martineau e Ernestine Rose, entre tantas outras.
Duvidar de deuses não chega a ser um fim em si mesmo. Mas o fato de as pessoas conseguirem questionar os dogmas mais caros à sociedade em que vivem é um sinal de que são livres para perscrutar o mundo e tentar estabelecer verdades que não estavam aparentes —e isso não apenas é um fim em si mesmo como também é a chave do sucesso do pensamento crítico e das ciências.
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