Embora não chegue aos pés de “A Vida de Brian”, produção de 1979 do grupo inglês Monty Python, na qual se inspira, “A Primeira Tentação de Cristo”, o especial natalino da trupe Porta dos Fundos, disponível na Netflix, é divertido e traz algumas boas piadas. O tom geral é de deboche. Deus é retratado como um tarado sacana, Maria é meio safadinha, e Jesus vive um tórrido romance homoerótico com Satanás.
Religiosos, como era de esperar, não gostaram e deram início a uma campanha em que pedem algo entre o boicote e a censura ao filme. Deve haver limites para o humor? Vale esculhambar a religião alheia? E piadas racistas, sexistas ou homofóbicas?
Eu sempre defendi uma liberdade de expressão forte —ninguém precisa de licença para dizer o que todos querem ouvir— e penso que ela deve ser ainda maior quando se trata do humor. Ao instituir uma lógica em que a brincadeira e o sério convivem, em que as coisas podem ser sem ser para valer, o humor funda uma ontologia própria, que tem profundas repercussões sociais.
Ele pode atuar como uma força a serviço do conformismo. Como observou Henri Bergson, o medo de tornar-se objeto do riso de outros faz com que o indivíduo reprima ele próprio suas excentricidades. A sociedade ganha em coesão, mas perde em diversidade.
Só que o humor também pode ser profundamente revolucionário. O jogo do “é, mas não é de verdade” permite que as pessoas sondem umas às outras e, sem se comprometer em demasia, desafiem o statu quo. As piadas sobre as agruras do socialismo no Leste Europeu, por exemplo, criavam situações em que os cidadãos conseguiam exprimir seu descontentamento com o regime sem correr grandes riscos. Tiveram papel importante na derrocada das ditaduras comunistas.
Esse caráter subversivo, que põe continuamente à prova os consensos sociais, é valioso o bastante para justificar que não existam barreiras para o humor.
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