Henrique Gomes

Físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

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Opor-se a comida geneticamente modificada é como negar aquecimento global

Ambientalistas dogmáticos endossam o consenso científico em um caso e o condenam no outro

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“Este arroz pode salvar a vida de um milhão de crianças por ano”, dizia a capa da revista americana Time em julho de 2000. Era referência ao “golden rice”, um tipo de arroz geneticamente modificado para produzir vitamina A, cuja deficiência causa cegueira e morte.

Cá estamos, quase 20 anos depois, e este arroz ainda não está disponível para aqueles que mais precisam dele. Por quê? Um novo livro, “Golden Rice: The Imperiled Birth of a GMO Superfood”, do jornalista científico Ed Regis, faz uma investigação imparcial das promessas do "golden rice" e dos enormes obstáculos entre o laboratório e a boca das crianças que deveria salvar.

colheita de milho
Colheita de milho geneticamente modificado no Texas - Tamir Kalifa/The New York Times

A vitamina A é presente na maioria dos alimentos disponíveis no mundo desenvolvido, mas é praticamente ausente na dieta —composta majoritariamente de arroz— das populações carentes do Sul e Sudeste Asiático.

Ali, a deficiência de vitamina A é responsável por mais mortes do que HIV, tuberculose ou malária: hoje chega a mais de 2.000 mortes por diaNuma escala global, cerca de um terço de todas as crianças sofrem desta condição, que pode também levar à cegueira.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS): “Cerca de 250 a 500 mil crianças sofrendo de deficiência de vitamina A tornam-se cegas a cada ano, sendo que metade delas estarão mortas menos de 12 meses depois de perderem a visão.”

Com esta crise mundial em mente, nos anos 1990, Peter Beyer, professor de biologia celular da Universidade de Freiburg, e Ingo Potrykus, professor de ciências vegetais no Instituto de Tecnologia de Zurique, recorreram à então recente tecnologia de manipulação genética. O objetivo era simples: inserir genes responsáveis pela produção de beta-caroteno no DNA do arroz comum.

O beta-caroteno é um precursor da sintetização de vitamina A pelo corpo humano e dá ao arroz uma cor alaranjada ou dourada, motivando (ainda mais) o nome “golden rice”. O caminho científico até este arroz dourado levou mais de dez anos, mas a versão atual é inteiramente eficaz.

Beyer e Potrykus imaginavam que haviam eliminado as conhecidas fontes de resistência política ao novo arroz: não havia questões ambientais (já que o arroz não era associado a nenhum tipo de pesticida); não havia possibilidade de propagação deste organismo geneticamente modificado (plantas de arroz não se propagam pelo vento); as sementes seriam dadas de graça aos pequenos fazendeiros em áreas afetadas pela deficiência de vitamina A; e em 2004 todas as patentes necessárias para a produção do arroz foram removidas —a ganância corporativa e a exploração dos fazendeiros também não apareceriam nas equações de custo-benefício.

O "superarroz" seria barato e sustentável e traria uma mudança de maré na saúde pública de algumas das populações mais carentes do mundo. Ou pelo menos assim esperavam os cientistas.

Mas desde sua criação, há quase 20 anos, o "golden rice" não ficou disponível para aqueles que mais precisam dele. Neste caso —que se isola de outras variáveis controversas, como o modelo de patentes e a ganância corporativa— a culpa é inteiramente do analfalbetismo científico, do medo irracional e de um ambientalismo mal motivado.

Ed Regis escreve: “Desde que o protótipo foi anunciado, o Greenpeace emitiu um fluxo interminável de comunicados, artigos de posicionamento e outras declarações miscelâneas sobre o golden rice que estavam cheias de distorções, imprecisões e exageros selvagens dos fatos”.

Em 2016, cerca de um terço dos recipientes do prêmio Nobel ainda vivos —dentre eles 41 em medicina, incluindo James Watson, recipiente em 1962 pela codescoberta da estrutura do DNA— assinaram uma carta aberta atacando o Greenpeace por sua campanha contra colheitas geneticamente modificadas, especialmente o "golden rice". 

A carta acusava o Greenpeace de representar falsamente os riscos, benefícios e impactos de alimentos vegetais geneticamente modificados. “Não há um único caso confirmado de resultados negativos para saúde humana como consequência de seu consumo. [...] A oposição dogmática, emotiva e contradita por fatos e dados precisa parar", escreveram.

George Church, professor de genética na Escola de Medicina de Harvard, é ainda mais incisivo: “Um milhão de vidas estão em jogo a cada ano devido à deficiência de vitamina A [...] A cada ano de atraso, são mais um milhão de pessoas mortas. Isso é assassinato em massa em uma larga escala.”

Realmente, a controvérsia tem pouca base científica. A humanidade indiretamente manipula os genes de animais e vegetais desde a revolução agrícola, há milhares de anos.

Até pouco tempo atrás, para diversificarmos possibilidades genéticas, era comum irradiar o DNA de plantas, um processo aleatório e pouco efetivo. De fato, a evolução das espécies é repleta de episódios onde raios cósmicos e defeitos na reprodução do DNA alteraram o código genético de algum organismo. A única coisa que mudou é que hoje somos capazes de controlar essas mudanças muito mais precisamente.

Como eu disse em outra coluna, a comunidade científica às vezes desliza, mas no geral merece a nossa confiança. Por exemplo, hoje é consenso que fumar causa câncer e o uso de combustíveis fósseis agrava o aquecimento global, apesar destas conclusões contrariarem interesses corporativos.

O caso de manipulação genética não é diferente: aqui também não há motivos para duvidarmos das conclusões da comunidade científica. Ser contra a introdução de alimentos geneticamente modificados como o "golden rice" é tão cientificamente descabido quanto opor-se a medidas de combate ao aquecimento global antropogênico. O ambientalista dogmático sofre de uma dissonância cognitiva ao endossar o consenso científico em um caso e condená-lo no outro.

Apesar da oposição, nos últimos anos o "golden rice" foi aprovado nos EUA, Canadá e Austrália. Mas essas são só vitórias simbólicas. As maiores vítimas, tanto de aquecimento global quanto de deficiência de vitamina A, são comunidades pobres, muitas delas no Sudeste Asiático.

Regis conclui: “Se o golden rice não tivesse enfrentado condições regulatórias tão restritivas, poderia ter sido cultivado por pequenos agricultores de arroz e distribuído por algumas das regiões mais pobres do Sul e Sudeste Asiático. Já teria salvo milhões de vidas e prevenido milhões de casos de cegueira infantil.”

Felizmente, e apesar de toda a campanha de desinformação ambiental, parece que estamos prestes a estancar a sangria: tudo indica que o "golden rice" será aprovado até o final do ano nas Filipinas e no Bangladesh, onde é urgentemente necessário.

O ambientalismo é obviamente importantíssimo, talvez mais hoje do que em qualquer outra época, e tem que ser levado à sério. Bens comuns são dificilmente precificados pelo mercado e o ambientalismo é fundamental para mediar interesses econômicos e os muitos desequilíbrios de incentivos associados ao meio ambiente.

Sem a pressão que ambientalistas exerceram no passado é provável que tivéssemos um buraco enorme na camada de ozônio e lençóis freáticos totalmente contaminados. Mas para que continue sendo efetivo e levado a sério, o ambientalismo moderno deve também continuar levando a sério o consenso científico. As crianças de Bangladesh agradecem.

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