Henrique Gomes

Físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

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Ceticismo sem cabimento é peso para avanço da humanidade

Brasileiros influentes têm duvidado de pontos pacíficos do conhecimento humano, como o formato da Terra

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Há indícios de uma recente explosão de obscurantismo ao redor do mundo. Uma de suas expressões é o ceticismo descabido.

Recentemente, brasileiros influentes têm se mostrado céticos sobre pontos pacíficos do conhecimento humano. Para recapitular: a Terra não é plana, a evolução não ocorre segundo a descrição da Bíblia e a Terra não é o centro do Universo.

Vejam bem, a dúvida não é inimiga da ciência. Muito pelo contrário, é parte integral ao seu funcionamento e bem-vinda por cientistas. Mas o excesso de dúvida —a dúvida sem cabimento— é um peso para o avanço da humanidade.

Nas próximas duas colunas, pretendo discutir a evolução das espécies sem seleção natural e o geocentrismo, deixando claro por que estas ideias estão mortas e não merecem ser desenterradas. Nesta primeira e mais longa coluna, investigo os limites do ceticismo, usando como estudo o caso dos terra-planistas.

A origem do ceticismo, como a de tantos outros "ismos", se deu na Grécia antiga. Ali nasceu o ceticismo saudável —que punha em dúvida dogmas com fundações frágeis e investigava os mais diversos aspectos do cotidiano.

Eratóstenes, em cerca de 240 a.C., ouvira dizer que uma estaca ereta durante o solstício em Syene (hoje no Egito) não projetava sombra ao meio-dia, mas projetava sombra em Alexandria naquela mesma data. Com base na distância entre as duas cidades, e no tamanho da estaca e o de sua sombra, Eratóstenes estimou a circunferência da Terra pela primeira vez, com admirável precisão.

Apesar de esta ser a primeira medição do raio da Terra, desde a escola de Pitágoras, no século 5 a.C., a experiência de marinheiros e o movimento das estrelas já havia convencido praticamente todos os filósofos de que o mundo era redondo. Até eles, aqueles primeiros desbravadores dos mecanismos do Universo, já concordavam que ceticismo sobre o assunto era infundado.

Uma Terra redonda explicava diversos fenômenos muito melhor do que uma plana; o melhor era abandonar esta dúvida e tomar o globo como ponto de partida para novos avanços no conhecimento.

Claro, ainda é possível que a Terra não seja realmente redonda. Que seja tudo parte de uma grande conspiração, na qual participam os historiadores, os pilotos de avião, os navegadores, as nações com programa espacial, os engenheiros responsáveis pela produção de nossos GPS, quase todos os cientistas do mundo etc. Milhões e milhões de pessoas. Como todos aqueles atores coadjuvantes no filme “O Show de Truman”, eles enrolam o resto de nós, patetas, século após século.

Há um problema óbvio: quanto mais gente participando nos bastidores, e mais Trumans andando livres por aí, fuçando onde não são chamados, mais difícil manter uma conspiração. Em 2016, David Grimes, físico de Oxford, publicou um artigo na renomada revista científica PloS One determinando os limites da duração de uma conspiração em função do número de pessoas por dentro do segredo.

Uma conspiração sobre o pouso na Lua por exemplo —ocorrido oficialmente em julho de 1969— não teria durado nem até meados dos anos 1970 até que a verdade fosse descoberta pela população geral. Para que dure cinco anos, há um limite de cerca de 2.000 conspiradores. O presidente americano Abraham Lincoln já entendia essa dificuldade: “Pode-se enganar a todos por algum tempo; pode-se enganar alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar a todos todo o tempo.”

Mesmo se uma conspiração for forjada por enormes interesses financeiros e políticos, a verdade parece sempre escapar pelas beiradas. Por exemplo, apesar de contrariar a vontade de corporações poderosas, hoje sabemos que cigarros causam câncer e que combustíveis fósseis contribuem para o aquecimento global. Volta e meia, a comunidade científica brevemente desliza, mas acaba recuperando o equilíbrio e seguindo em frente. No geral, ela merece a nossa confiança.

Pois lembremos que não há alternativa: a certeza absoluta não existe. É possível duvidar de tudo. Ou quase tudo: Descartes, perseguindo esta linha de questionamento, chegou à conclusão de que só não conseguia duvidar de que havia algum sujeito praticando a dúvida, ou pensando, e logo existindo.

Mas, tendo achado este ponto de certeza, ele reconstrói a possibilidade de conhecimento humano e segue suas investigações sobre o universo. Pois ele bem sabia que o ceticismo extremo é absolutamente paralisante. Para andar para a frente como civilização, precisamos escolher bem o foco de nosso ceticismo.

Ao contrário daqueles antigos pensadores gregos e iluministas, nós não temos tempo de verificar cada avanço no nosso conhecimento coletivo. Não temos também, individualmente, os recursos necessários para as investigações feitas hoje em dia. Mesmo assim, não é porque nunca vimos com nossos próprios olhos a Austrália, átomos, a galáxia de Andrômeda ou uma tira de DNA que devemos duvidar que estas coisas existam.

Nós não precisamos entender como um GPS ou um motor à combustão funciona para usufruirmos destas tecnologias, mas também não nos cabe duvidar daqueles que de fato as entendem e as produzem para nós. A divisão do trabalho opera também na epistemologia, e assim a humanidade como um todo avança seu conhecimento.

Psicologicamente, a maioria das pessoas adere a teorias conspiratórias porque procuram impor ordem a um universo que lhes parece demasiado indiferente. Um universo sem leme, à deriva num mar de acaso, é uma imagem dura para aqueles que se sentem injustiçados ou à beira do resto da sociedade.

Um estudo de 2017, publicado na revista acadêmica Journal of Experimental Social Psychology, ligou sensações de solidão à formulação de teorias de conspiração. Quanto mais se induzia sensações de exclusão nos cobaias, mais desconfiados ficavam em relação ao governo e mais significado davam à correlações espúrias. A solidão traz à tona uma busca por sentido, e esta busca ajuda a confabular mecanismos ocultos operando no mundo.

Como civilização, precisamos continuar avançando, mesmo que teorias de conspiração ofereçam conforto psicológico para alguns. A ciência é a maior responsável pelos enormes ganhos em qualidade de vida humana desde a Idade Média.

A cruzada contra a ciência, no fundo, é uma cruzada contra a civilização e todas suas conquistas. Dificilmente chegará a ser mais do que excentricidade daqueles de alguma forma alheios à sociedade que tentam combater.

Mesmo assim, a se observar como tais pessoas têm chegado a posições influentes no Brasil e no mundo, há um risco concreto: esse obscurantismo, fruto de uma rebeldia mal interpretada e mal direcionada, pode nos custar anos de desenvolvimento.

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