Henrique Gomes

Físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

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Novos experimentos trazem à tona a questão do livre-arbítrio

Para ter significado, conceito precisa declarar independência da física

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O leitor abriu a página, leu o título, e escolheu ler esta matéria. Não aquela, sobre a celebridade X ou o evento Y. Quais fatores determinam uma escolha ao invés de outra? Aliás, dá para falar mesmo em escolha? O poder de um agente de fazer uma escolha, de determinar o próprio futuro, independentemente das circunstâncias, é chamado de livre-arbítrio.

Mas quando podemos dizer que a escolha foi feita de forma independente das circunstâncias? Há sempre uma corrente causal precedendo qualquer decisão. Talvez o leitor só tenha escolhido este texto porque havia conversado sobre isso na quinta-feira passada. Ainda conta como livre-arbítrio? Como atribuir culpa e mérito ao indivíduo sem antes determinarmos o grau de controle que temos sobre nossas ações?

blog em tempo - Cérebro de super-velhos tem mais conexões (Imagem Gerd Altmann)
Simulação de sinapses cerebrais em supervelhos - Gerd Altmann

A resposta a esta última pergunta tem vários desdobramentos. Por exemplo, muitos intelectuais hoje acreditam que não há livre-arbítrio no nível neurológico; usam este fato para tentar coibir uma sana punitiva do sistema jurídico. Pretendo apontar neste texto que esta cadeia de argumentos é falha, assim como a ênfase na malha causal envolvendo cada decisão. Defenderei aqui que o livre-arbítrio é conceito científico e útil, mesmo que não exista no nível neurológico.

Dada a sua importância, o conceito é pouco discutido em fóruns públicos. Estamos agora, contudo, em meio a um surto de interesse. Isso é resultado de reavalição de um famoso experimento neuro-científico, o chamado experimento de Libet, aqui descrito em uma matéria popular na revista The Atlantic.

O experimento original foi realizado em 1964 na Alemanha. Só 20 anos mais tarde seria interpretado pelo psicólogo americano Benjamin Libet como consequente para o livre-arbítrio. Medindo correntes elétricas ao redor das cabeças dos cobaias, os alemães afirmavam prever uma ação humana extremamente simples, o apertar de um botão, antes mesmo que os próprios cobaias se dessem conta da decisão de apertá-lo.

A revisão, publicada agora em novo estudo pelo também alemão Aaron Schurger e colegas, afirma que o experimento não "prevê" decisão nenhuma: simplesmente detecta uma corrente elétrica cíclica no cérebro.

Segundo eles, é o vai-e-vem desta corrente que leva à decisão de apertar o botão. Tentam, assim, isolar os fatores relevantes na malha causal que determinam nossas escolhas. Não vejo diferença relevante entre as duas gerações do experimento; o fato de que a decisão não “surge do nada” é mantido por ambos.

Em outras palavras, os experimentos só dizem respeito à previsão de ações humanas a partir de causas anteriores. Mas o que quero argumentar aqui é que, trocando em miúdos, o foco ali é prever uma ação humana extremamente simples, o apertar de um botão, antes mesmo que as próprias cobaias se deem conta que decidiram agir.

Previsibilidade não intromete-se no livre-arbítrio. Previsibilidade é um conceito bem entendido pela ciência moderna. Segundo o paradigma científico atual, a evolução no tempo de qualquer sistema pode ser de dois tipos: ou previsível teoricamente a partir de seu estado inicial, e então o sistema é chamado de ‘determinístico, ou é aleatório, e portanto imprevisível teoricamente.

Nenhum dos lados desta dicotomia acomoda o que chamamos de livre-arbítrio. Quando imaginamos tomar nossas próprias decisões, não imaginamos que sejam aleatórias, como se o universo jogasse um dado toda vez que fizéssemos uma escolha, e nem que já estejam fixas, engessadas nas condições iniciais do universo. Imaginamos que criamos as nossas próprias escolhas, que temos autoria sobre nossas decisões, e que poderíamos ter feito diferente.

Mas a verdade é que ou nossas vontades são determinadas por causas prévias, e nós não somos responsáveis por elas, ou elas são oriundas de processos aleatórios, e nós também não somos responsáveis por eles. Isto é, seja lá o que for que chamamos de livre-arbítrio, ele não aparece no nível de ciência exata. Simplesmente não vamos encontrar agência nesse nível de descrição da natureza.

Esta conclusão leva muitos intelectuais modernos a declarar que o livre-arbítrio não existe. O famoso escritor e neurocientista americano Sam Harris, por exemplo, já declarou: “O livre-arbítrio é na verdade mais do que uma ilusão (ou menos), em que não pode ser feito conceitualmente coerente.”

Mas a inferência é precipitada. Estes intelectuais estão corretos em dizer que o livre-arbítrio não pode ser encontrado no nível físico de partículas e forças; o conceito não se encaixa na dicotomia determinista-aleatória. Mas estão errados ao acreditarem que só o nível mais fundamental de descrição do universo carrega significado.

A visão é tacanha porque há mais de um nível em que podemos descrever o universo, e todos são necessários para uma descrição completa. Mesmo deixando humanos e as humanidades de lado, a prática das ciências naturais já lida com várias camadas de descrição e conhecimento.

O biólogo não precisa aprender relatividade. Mesmo a química, ciência tão exata, tem leis embasadas na física, mas irredutíveis a ela. Para tomar um exemplo mais específico, ninguém se restringe a usar só as leis da física de partículas fundamentais para entender as interações de complexos moleculares. Ainda que possuíssemos computadores capazes desse feito, o resultado seria impenetrável: páginas de equações que trariam pouco esclarecimento sobre o processo em questão. O mesmo aconteceria com o livre-arbítrio; mesmo que conseguíssemos computar todas as influências na malha causal que leva às nossas decisões, o resultado seria ininteligível.

Isto ocorre porque a descrição de fenômenos em um nível por conceitos de outro tende a ser extremamente opaca. A melhor explicação do fenômeno nem sempre vem da camada teórica mais profunda.

Mesmo que haja direcionalidade, um nível da natureza se embasa no outro, cada altitude traz sua própria heurística, suas próprias leis. Ignorar a independência de várias camadas de descrição da realidade, como fazem muitos intelectuais hoje, é limitar nossa capacidade de compreender o mundo. É caso de miopia epistêmica, onde só enxergamos os menores detalhes possíveis, e não todos os padrões.

Agora é fácil ver por que tanto o experimento de Libet quanto sua revisão por Schurer, assim como qualquer outro experimento focado em mecanismos neurológicos, são irrelevantes para a questão do livre-arbítrio.

Pois o conceito de livre-arbítrio opera em outra esfera de descrição, apropriada a outros fenômenos: é impossível falar de política, economia, jurisprudência e até mesmo ciência cognitiva sem ele. Todas essas áreas levam em conta o indivíduo como agente, fazendo escolhas e determinando o próprio futuro. Assim como não precisamos justificar o conceito de massa em aplicações da teoria da gravidade, o livre-arbítrio também não precisa ser justificado em seu âmbito. É um conceito cientificamente útil, e existe em seu nível, ainda que este nível não seja o da física ou mesmo o da neurociência.

Claro que essa resposta não resolve nenhuma questão que colocamos no início. Não nos diz exatamente como atribuir culpa e mérito, por exemplo. Mas nos mostra como erram aqueles, como Sam Harris, que aplicam a inexistência do livre-arbítrio em uma camada, a física, para tentar resolver questões em outra, a jurídica. Como se diz em inglês, ladram abaixo das árvores erradas. Mas é porque só veem árvores, e não a floresta.

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