O ano de 2020 será lembrado por muitas coisas: a derrota de Trump, a pandemia de Covid-19 e, agora, já nos acréscimos, possivelmente a primeira contribuição de inteligência artificial para o bem-estar da humanidade.
Na semana passada, uma rede de inteligência artifical chamada AlphaFold, desenvolvida pela empresa DeepMind —rebento do Google— deu um passo significativo para resolver um problema que atormenta nosso conhecimento teórico de biologia molecular há décadas: o dobramento (ou, mais precisamente, o "enolamento", termo que acho horrível) de proteínas.
Em suma, a ideia é a seguinte: nosso código genético é uma receita para produção de proteínas, que são formadas por sequências de aminoácidos interligados. Idealmente, queremos determinar como essas proteínas funcionam no mundo real a partir dessa sequência, mas as interações de uma proteína são em grande parte determinadas pelo seu formato no espaço e há enorme dificuldade computacional em prever esse formato —o dobramento da proteína no espaço— só tendo a sequência em mãos.
Daí, em 1994, surgiu a competição Avaliação crítica de previsão de estrutura de proteínas (CASP, na sigla em inglês), que almejava fomentar a pesquisa sobre o problema. Simplificando um pouco, a competição consistia em fornecer as sequências de aminoácidos e comparar a previsão dos competidores com os resultados experimentais, observados através de cristalografia ou outros métodos experimentais, como a espectroscopia por ressonância magnética, que tem mais precisão.
Por volta de 2017, muitos pesquisadores da área acreditavam que o progresso na questão havia encalhado. Em 2018, a coisa mudou de figura dramaticamente: a DeepMind entrou na competição e ganhou de lavada.
Ainda assim, suas previsões não eram precisas o suficiente para competir com as verificações experimentais, bem mais laboriosas. Em 2020, houve novo salto qualitativo: em muitos casos não era mais possível discernir as previsões teóricas da AlphaFold dos resultados experimentais.
Anteriormente, a inteligência humana já havia recebido uma lição de humildade, mas em arenas bem mais lúdicas, menos importantes. O exemplo mais espantoso se deu em 2016, quando um algoritmo de aprendizado de máquina chamado AlphaGo, também desenvolvido pela DeepMind, surpreendeu especialistas em inteligência artificial e venceu com autoridade o campeão mundial de "Go", jogo com número de possibilidades superior às do xadrez por ordens de magnitude. Porém, agora o aprendizado de máquinas virou assunto sério.
Prever o dobramento de proteínas é um grande passo para evitar doenças —o Alzheimer, por exemplo, se dá porque uma certa proteína falha em se dobrar apropriadamente— e criar novas drogas e tratamentos.
Contudo, como alertam especialistas, apesar de grande, este não é o passo final antes de conseguirmos desenvolver novas drogas eficientes no computador: ainda precisamos conseguir prever o dobramento de complexos de proteínas e estamos longe disso.
Apesar disso, o avanço será sem dúvida lembrado como a primeira vez que o aprendizado de máquinas superou o intelecto humano em uma questão extremamente importante para o nosso bem-estar.
Em entrevista à revista Nature, Andrei Lupas, biólogo evolucionista do Instituto Max Planck de Biologia do Desenvolvimento em Tübingen, na Alemanha, que avaliou o desempenho de diferentes equipes no CASP, declarou que o avanço “é uma virada de jogo”.
A AlphaFold já o ajudou a encontrar a estrutura de uma proteína procurada por uma década pelo seu laboratório. “Isso vai mudar a medicina. Isso mudará a pesquisa. Isso mudará a bioengenharia. Vai mudar tudo”.
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