Henrique Gomes

Físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

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O que as colônias de formiga nos ensinam sobre a consciência humana?

Caráter subjetivo da experiência humana não nega o materialismo científico

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Na última coluna, eu discuti o livro "Being You: a New Science of Consciousness" (Penguin, 2021, ainda sem título no Brasil), do neurocientista britânico Anil Seth. No livro, Seth sintetiza um argumento popular da neurociência moderna: que nós parcialmente "alucinamos a realidade".

Isto é, dados os recursos computacionais limitados e o acesso estreito a que o cérebro tem à realidade lá fora, ele não consegue modelar o mundo em completo detalhe.

Os detalhes que faltam são projetados ou "alucinados" pelo cérebro, que faz previsões sobre o que seriam e inclui essas previsões no modelo do mundo que se apresenta na nossa consciência. Em suma: nós "pressupomos" muito mais do que enxergamos.

Um outro tópico encarado por Seth é a consciência em si. O argumento acima explora aspectos objetivos da consciência. É uma explicação sobre o modelo do mundo que carregamos em nossas cabeças o tempo inteiro.

Essa explicação, ou uma similar, se aplicaria a muitos outros sistemas —mesmo sistemas inconscientes— que precisam formar um modelo simplificado dos seus ambientes. Por exemplo, um aspirador de pó automático de última geração forma um modelo do seu ambiente de uma forma qualitativamente similar.

Foto mostra um robô-aspirador Roomba, na cor preta, em cima de um chão de madeira
Robô-aspirador autônomo - Divulgação/iRobot

Mas nossa experiência humana tem também um caráter subjetivo, inefável, que o aspirador de pó certamente não tem. Muitos filósofos argumentam que esse caráter é uma parte importante da realidade, uma parte inexplicável por conceitos físicos, que, por ser inexplicável, representa um enorme fracasso da visão materialista do universo.

De acordo com Seth (e outros filósofos renomados, como o americano Daniel Dennett), essa conclusão é prematura.

É prematura porque o materialismo científico tem a seu dispor várias linguagens, ou níveis, que pode utilizar para descrever o mundo. O materialismo não está vinculado a explicações que só operam no nível mais profundo da física —o da física de partículas subatômicas, por exemplo. Explicações que não se atém a esse nível podem ser inteligíveis e coerentes com o materialismo científico.

Para tomar um exemplo que se enquadra completamente dentro do paradigma materialista: temperatura é uma propriedade que não se aplica a uma só partícula, ela é uma quantidade que emerge quando temos grandes números de partículas (e pode ser identificada com a energia cinética média desse agregado).

Há aqui dois níveis de explicação: o da partícula e o do agregado. A energia cinética das moléculas é mais adequada para uma análise microscópica, e a temperatura é mais adequada para uma análise macroscópica.

Há também bons exemplos de níveis de explicação na biologia. Apesar de ter milhões de indivíduos em um ninho, uma colônia de formigas pode coordenar facilmente a manutenção, realocação e alimentação do ninho sem nenhum planejamento central. Uma colônia tem propriedades complexas que emergem da interação de milhares de formigas, cujo comportamento individual é extremamente simples.

A organização das sociedades de insetos é um exemplo marcante de um sistema descentralizado complexo que emerge das interações de muitos indivíduos.

Como eu escrevi em outra coluna (lidando com a questão do livre-arbítrio): "A descrição de fenômenos em um nível por conceitos de outro tende a ser extremamente opaca. A melhor explicação do fenômeno nem sempre vem da camada teórica mais profunda. Mesmo que haja direcionalidade —um nível da natureza se embasa no outro—, cada altitude traz sua própria heurística, suas próprias leis. Ignorar o certo grau de independência entre as várias camadas de explicação da realidade é limitar nossa capacidade de compreender o mundo. É caso de miopia epistêmica, onde só enxergamos os menores detalhes possíveis, e não todos os padrões".

Seth sugere que a experiência de primeira pessoa, o seu caráter subjetivo, é uma dessas propriedades que emergem de um nível mais fundamental, onde a propriedade não pode ser encontrada.

Da interação de bilhões de simples neurônios, emerge uma propriedade complexa que é o caráter subjetivo. Essa propriedade é real: pertence a um nível da natureza e é bastante explicativo. Mas tentar destrinchar o caráter subjetivo em termos de um nível mais fundamental —por exemplo, de neurônios— é fadado ao fracasso.

Pode aqui parecer que essa é uma solução fácil, que não engaja com os detalhes da emergência. Mas Seth vai além (assim como muitos outros filósofos), postulando um critério: dado um nível complexo B, embasado em um nível fundamental A, uma propriedade de B é dita "emergente" quando as leis emergentes de B nos fornecem previsões mais precisas do comportamento futuro de B do que teríamos só sabendo as leis mais fundamentais do nível A.

Por exemplo, saber as leis da química nos dá maior previsibilidade sobre a evolução temporal de processos químicos do que saber só as leis da física de partículas.

Ou ainda: entender certos comportamentos das colônias de formigas nos permite entender melhor sua dinâmica do que entender a biologia individual de cada formiga. Na linguagem de Dennett, estas propriedades são "padrões reais": não só figuram nas nossas melhores explicações, mas têm caráter ontológico similar a objetos mais palpáveis, como cadeiras e aviões.

Se a consciência realmente emerge dessa forma é ainda, a meu ver, uma questão aberta, que precisa ser estudada em detalhe. Mesmo assim, a mera possibilidade é suficiente para que o materialismo científico siga vivo e bem, muito obrigado.

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