Henrique Gomes

Físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Henrique Gomes

Por que simetrias são fundamentais para entender leis da natureza

Teoria de calibre, objeto da obra de Steven Weinberg, está na fundação do nosso conhecimento de física teórica

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Prometi que, nesta semana, faria um réquiem para o recém-falecido físico Steven Weinberg. Não sou músico, poeta e nem mesmo escritor, então me contento com uma homenagem mais modesta: traduzir parte do conteúdo altamente técnico do trabalho de Weinberg para um público leigo, mas interessado.

Grande parte da obra de Weinberg focou o que físicos chamam de teoria de “gauge” ou, na sua tradução mais comum para o português, teoria de calibre. A teoria de calibre é o alicerce do extremamente bem-sucedido modelo padrão da física de partículas que Weinberg ajudou a desenvolver, e a teoria está nas fundações do nosso entendimento da física teórica como um todo.

Juntamente com a mecânica quântica, a teoria de calibre descreve como as forças que regem o mundo microscópico funcionam e também se aplica à relatividade geral de Einstein, que rege o comportamento de galáxias e outros objetos cósmicos, como buracos negros.

Contudo, ao contrário da teoria da relatividade, dos buracos negros e da mecânica quântica, a teoria de calibre é relativamente desconhecida do publico não especializado. O motivo é simples: é difícil de explicá-la sem usar matemática relativamente avançada. Mas vamos lá.

O poder da teoria de calibre provém da sua conexão com simetrias. Segundo outro famoso prêmio Nobel de física, P.W. Anderson, “é apenas um pouco exagerado dizer que a física é o estudo da simetria”. Como todos nós temos experiência com simetrias, este é um bom ponto de partida.

Um círculo tem simetria: se o girarmos ao redor do centro, ele continua com a mesma aparência. As leis da natureza também têm simetrias: solte uma maçã de sua mão hoje e ela cairá ao chão com uma certa aceleração. Faça o mesmo amanhã e observará aproximadamente o mesmo fenômeno, com a mesma aceleração. Por incrível que pareça, essa simetria temporal está relacionada à lei de conservação de energia. Vejamos em mais detalhes como isso ocorre.

Ao cair, a maçã ganha velocidade e, assim, o que físicos chamam de energia cinética. Ao mesmo tempo, ela perde energia potencial: aquela energia que está guardada na posição da maçã no nosso poço gravitacional diminui conforme a maçã se aproxima do chão. Ou seja, a energia potencial pode ser convertida em energia cinética, que é o que acontece quando soltamos a maçã.

Mas a energia cinética também pode ser convertida de volta em energia potencial —se a maçã estivesse presa em um elástico por exemplo, que a retornasse à posição inicial— ou até mesmo em outras formas de energia. Isto é o que ocorre, por exemplo, nas usinas hidrelétricas: a energia potencial da água se converte em outras formas de energia, como eletromagnética.

O que é comum a todos esses processos é que a energia total do sistema permanece constante: perde aqui, mas recupera ali.

O motivo de ela permanecer constante é que as leis da natureza não variam com o tempo. Para entender o porquê, imagine que a força da gravidade mude ao longo da trajetória da maçã. Calcularíamos uma força potencial antes de soltar a maçã, mas, se no meio do caminho a força da gravidade aumentasse, teríamos um aumento da energia potencial e cinética.

A energia com que a maçã chegaria ao chão seria maior que a energia potencial que ela tinha ao começar sua queda. Se a prendêssemos em um elástico, a maçã teria mais velocidade na volta que na ida.

Essa relação entre conservação e simetria foi formalizada em um teorema, provado pela matemática alemã Emmy Noether em 1918, que diz que, para cada simetria das leis da natureza, corresponde uma quantia conservada e vice-versa. Por exemplo, a carga elétrica é conservada: ela nunca é criada nem destruída (é por isso que nossas baterias não podem funcionar pra sempre).

De acordo com o teorema de Noether, há uma simetria das leis da física que corresponde à essa conservação (a simetria aqui é por uma rotação da fase quântica do elétron, mas não vou me aprofundar). E assim vai: para cada tipo de carga conservada, há uma simetria, e cada grupo de simetria tem as suas próprias propriedades matemáticas.

Sabendo todos os tipos de cargas conservadas por meio do correspondente grupo de simetria, descobrimos muito sobre outros aspectos das leis que regem seu comportamento. Por isso, é possível dizer que as simetrias descrevem o modelo-padrão da física de partículas.

Como exatamente elas fazem isso é mais complexo, então convido só os mais destemidos a lerem adiante. Para quem quiser parar por aqui, espero ter dado uma ideia de como as leis de conservação e suas simetrias são importantes na física moderna.

Aludi acima a um teorema de Emmy Noether, que relaciona cargas conservadas a certas simetrias das leis da natureza. Essas simetrias são rígidas: têm que se aplicar igualmente em todo ponto do espaço.

Mas a grande Noether têm um segundo teorema famoso, que se aplica também a simetrias que podem agir independentemente em lugares diferentes. Para visualizar este tipo de simetria mais maleável, imagine um laboratório no espaço sideral. Intuitivamente, os experimentos conduzidos nesse laboratório não dependem de sua orientação no espaço: se girarmos o laboratório por alguns graus ao redor de algum eixo, os experimentos conduzidos ali dentro registrarão os mesmos resultados antes e depois do giro.

A matemática Emmy Noether com lápis na mão
A matemática Emmy Noether - Konrad Jacobs/Erlangen/Wikimediacommons

Mas podemos adicionar um segundo laboratório, e, mesmo que giremos os dois através de eixos e quantias diferentes, os resultados em cada um continuarão iguais antes e depois da operação. Esse tipo de simetria não é rígido e sim maleável ou local; são também chamadas de simetrias de calibre e dão nome à teoria. Seu uso é ubíquo e extremamente útil quando físicos teóricos procuram formular novas leis da natureza.

Isto porque o segundo teorema de Noether não liga simetrias maleáveis a cargas conservadas, mas faz algo parecido: para cada tipo de simetria local, o teorema impõe certas restrições nas formas que as leis da natureza podem tomar. Assim, o teorema drasticamente delimita o espaço de possíveis leis que são compatíveis com as simetrias locais. Isso me permite descrever o que é, para mim, a maior joia das teorias de calibre.

Cargas, como as elétricas, não existem isoladas do resto do mundo: elas produzem campos, através dos quais interagem com outras cargas. Por exemplo, um elétron produz um campo elétrico através do qual ele interage com outros elétrons. Mas não pensemos que os campos de força da natureza são só aqueles criados por cargas; eles têm “vida própria”, suas próprias leis de movimento. Ondas eletromagnéticas, por exemplo, se propagam no vácuo e poderiam existir mesmo em um universo vazio.

Essa independência ou vida própria cria uma dificuldade para o físico teórico: ao criar uma nova teoria, como garantir que a dinâmica dos campos gerados pelas partículas respeite as leis de conservação de carga?

Por exemplo, a princípio, a dinâmica do campo permitiria que uma carga elétrica esteja associada a maior intensidade de campo aqui do que ali, amanhã do que hoje. Isso seria desastroso, porque só temos acesso experimental às cargas através de suas interações por campos e, portanto, uma variabilidade do campo como essa comprometeria qualquer dedução sobre o comportamento das próprias cargas.

Esse argumento, finalmente, me permite descrever o enorme poder das teorias de calibre para a construção de teorias autoconsistentes. Como vimos antes, o primeiro teorema de Noether garante que a conservação da carga do elétron está relacionada a uma simetria rígida, mas podemos flexibilizar essa simetria rígida, permitindo que seja aplicada diferentemente em posições diferentes.

Isto é, podemos tomar a simetria rígida e torná-la maleável. Ao fazer isso, o segundo teorema de Noether nos garante que as leis da natureza ficarão restritas a certas formas. Essas restrições justamente garantem a compatibilidade da dinâmica dos campos com a conservação das cargas.

Trocando em miúdos: ao flexibilizar uma simetria rígida associada a alguma carga, garantimos que a dinâmica dos campos de força que interagem com essas cargas respeite a conservação da carga. Em outras palavras, a conversão de uma simetria rígida em uma maleável garante a compatibilidade entre a conservação de carga e a dinâmica dos campos correspondentes.

Por isso, é possível dizer com algum grau de certeza que, mesmo que no futuro próximo descubramos novas partículas, com novos tipos de carga e novas forças, físicos usarão teorias de calibre para descrevê-las. Como disse Weinberg: “Está cada vez mais claro que o grupo de simetria da natureza é a coisa mais profunda que entendemos sobre a natureza hoje”.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.