O anúncio deveria ser um dos pontos altos da visita do presidente Lula a Pequim, mas fez barulho mesmo com o adiamento da viagem: Brasil e China fecharam um acordo para realizar trocas comerciais sem passar pelo dólar.
A façanha será viabilizada por um arranjo costurado pelas autoridades monetárias de ambos os países, usando o banco ICBC como câmara de compensação —ou seja, uma instituição financeira com liquidez no renminbi capaz de converter diretamente para o real sem usar a moeda americana no processo.
A notícia fez barulho na internet. Só nesta semana, passei por uns quatro ou cinco influenciadores no TikTok usando o acordo como um exemplo da derrocada do dólar (e dos Estados Unidos por tabela), além de algumas análises entusiasmadas sobre "a volta do Brics" e de resmungos de políticos e analistas americanos, que usaram o caso como exemplo de como a China está trabalhando para consolidar sua hegemonia alheia às tentativas de contenção promovidas por Washington.
Há um alto grau de exagero nisso tudo, é claro, mas em essência o Brasil é mais uma peça no ambicioso (e ainda imaturo) projeto chinês em internacionalizar sua divisa. A motivação parte de uma ansiedade compartilhada por burocratas do alto escalão no Partido Comunista e do Banco Popular da China que data de bem antes dos estranhamentos com Washington e remonta a 2008.
A crise naquele ano gerou um problema global de liquidez da moeda americana. Com pouco dólar circulando, o comércio internacional ficou paralisado e portos inteiros precisaram interromper operações porque não era possível pagar mercadorias.
Temerosa quanto aos efeitos de futuras instabilidades na macroeconomia americana para suas exportações, a China chegou a sugerir a substituição do dólar por uma unidade monetária artificial que seria gerida pelo Fundo Monetário Internacional. Sem apoio, porém, começou a desenhar alternativas para evitar a dependência dos Estados Unidos.
A ambição foi incluída como parte central do 12° Plano Quinquenal (espécie de roteiro usado para balizar as metas do regime chinês a cada cinco anos) e tem sido promovida principalmente por meio de acordos bilaterais.
Pequim oferece, por exemplo, opções mais atrativas de financiamento para projetos da Iniciativa de Cinturão e Rota usando o renminbi e já fez uso pontual da moeda para contornar sanções americanas a países terceiros. No médio prazo, o objetivo é integrar economias relevantes para seus objetivos estratégicos, levando-as à sua esfera de influência.
Internacionalizar o renminbi também é um seguro contra sanções no futuro. Como toda transação que usa o dólar em algum momento passa por bancos intermediários nos EUA, Washington passou a usar cada vez mais frequentemente o poder de bloquear o acesso de grupos, empresas e até países inteiros a transações com sua divisa. Nos últimos anos, países como Irã, Venezuela e Rússia foram impactados por esses bloqueios. Os chineses sabem que podem ser os próximos e querem minimizar o impacto.
Apesar disso, ao contrário do que fazem crer as análises apaixonadas, o caminho ainda é longo. Para proteger a economia doméstica, a China ainda coloca barreiras significativas para entidades estrangeiras obterem renminbi.
As operações são, em geral, mais onerosas e burocráticas, e o sistema financeiro chinês não é nem de longe tão maduro quanto o americano. Ademais, operações usando o renmibi são uma aposta na robustez da economia por lá, que vacilou durante a pandemia e precisará contornar complexos gargalos nos próximos anos para continuar a trajetória ascendente.
Assim, não chega a surpreender a divisa chinesa representar hoje apenas 4,3% do mercado internacional, enquanto o dólar domina 88,3%, segundo estimativas do FMI.
Grandes anúncios como os das tratativas com o Brasil podem dar uma impressão errada do cenário, mas a verdade é uma só: no curto prazo, a hegemonia americana neste jogo de xadrez segue praticamente intacta —ainda que, olhando muito à frente, Pequim tenha começado a fazer movimentos sólidos no tabuleiro.
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