Itamar Vieira Junior

Geógrafo e escritor, autor de "Torto Arado"

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Descaso com 'índio do buraco' e luto por Elizabeth 2ª mostram sobrevida da colonização

Aldear a política e eleger Congresso decolonial são chances de romper sistema perverso que Bolsonaro representa

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Imagine o último sobrevivente de sua família, da vizinhança, de seu povo, fadado a viver o resto dos seus dias entre a memória de uma vida e o horror do presente, tentando preservar a própria integridade em meio à destruição. Parece uma narrativa de ficção distópica, mas esse é um resumo das últimas décadas de vida do indígena Tanaru, mais conhecido como índio do buraco.

Último homem de uma etnia desconhecida, o indígena foi encontrado morto no final de agosto no território onde viveu em Corumbiara, no sul de Rondônia. Adornado com penas de araras, parecia ter se preparado para a morte de acordo com suas crenças. Com ele desaparece uma língua, uma história, a cultura inteira de uma sociedade, que, é provável, jamais venhamos a conhecer.

Interior de cabana
Cabana em que indígena tanaru viveu isolado em em Corumbiara, no sul de Rondônia - Funai/Divulgação

O indígena Tanaru foi localizado por uma missão da Funai em 1996, depois de reiterados massacres perpetrados por fazendeiros. Único sobrevivente de seis remanescentes de sua etnia, ele recusou contato com não indígenas, permanecendo isolado até o dia de sua morte.

Isso não impediu que os indigenistas Altair Algayer e Marcelo dos Santos o monitorassem, prestando assistência com sementes, instrumentos de trabalho e promovendo uma verdadeira cruzada para restringir o uso do seu território e assim garantir a sua sobrevivência.

Nesses mesmos dias em que se tornou conhecida a morte do indígena, o país recebeu o coração insepulto do imperador dom Pedro I, tido pela historiografia oficial como protagonista da Independência. O órgão inanimado foi saudado com pompas pelo presidente da República e aberto à visitação em um ritual mórbido, como tudo que tem o condão deste governo.

Nenhuma palavra sobre os povos originários, sobre os imigrantes e descendentes da diáspora africana, sobre as mulheres que se insurgiram contra a colonização ao longo de décadas e abriram caminhos para o início de uma independência nunca concretizada. Dois eventos que demonstram a sobrevida da colonização em nossas vidas.

Meses atrás escrevi aqui sobre o impacto da leitura de "Perder a Mãe", de Saidiya Hartman, e sobre como ela discorre sobre o conceito de "sobrevida da escravidão". Para Hartman, séculos de práticas perversas nos legaram "uma medida humana e um ranking de vida e valor que ainda têm de ser desconstruídos".

Para o Brasil colonial que sobrevive entre nós, vidas indígenas e negras estão na base deste ranking, prolongando o sistema de exploração perverso. A diferença agora é que somos colonizadores de nós mesmos.

Uma mostra dessa sobrevida da colonização vem do próprio presidente da República, que decretou luto oficial de três dias pela morte da rainha Elizabeth 2ª e se dirigiu à embaixada do Reino Unido para assinar o livro de condolências. Sempre esperamos gestos de cortesia de um chefe de Estado, é rito comum nas relações diplomáticas. Sabemos também que ele está em campanha eleitoral e que o natural seria não demonstrar nenhuma compaixão.

Mas é importante demonstrar quais os reais interesses do governante e reiterar que jamais devemos esquecer as atrocidades cometidas pelo Império Britânico contra suas ex-colônias e que a monarquia é um símbolo incontornável desta trágica história.

Bolsonaro assina, na embaixada do Reino Unido, livro de condolências pela morte de Elizabeth 2ª - Clauber Caetano - 12.set.22/Presidência da República/AFP

Para a elite colonial brasileira, que ajudou a eleger Bolsonaro e continua a apoiar seu governo nefasto, a morte do indígena Tanaru não merece nenhuma menção. Não foi decretado luto nem houve anúncio de políticas para mitigar a destruição da floresta ou conter o genocídio indígena. Pelo contrário: nos últimos dias, foram publicados relatos de grande violência contra as comunidades guarani-kaiowá e guajajara. No bicentenário da Independência, há muito pouco para celebrar.

Os recordes de destruição da Amazônia, a violência sistemática contra indígenas, os privilégios de que gozam os magnatas da mineração e do agronegócio são evidências do que precisa mudar em nossa história. São também a prova de que a verdadeira independência será feita por nós.

As eleições são apenas uma das oportunidades que temos para erradicar a colonização da nossa sociedade. Se é natural que voltemos nossa atenção para o perigo que ocupa atualmente a cadeira da Presidência da República e desejemos mudanças, é mais necessário ainda eleger um Congresso decolonial, capaz de romper com os grilhões do passado e continuar a abrir caminhos para a independência.

Há um movimento poderoso da Articulação dos Povos Indígenas para "aldear" a política. Há outros movimentos espelhando a diversidade de nossa história. É a chance que nós temos de pôr um fim à sobrevida do atraso.

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