Itamar Vieira Junior

Geógrafo e escritor, autor de "Torto Arado"

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Itamar Vieira Junior

Ver 3ª posse de Lula trouxe mesma emoção que senti com meu pai nas outras vezes

Vinte anos se passaram e tanta coisa havia mudado em mim e no mundo

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Meu pai só pôde votar pela primeira vez para presidente da República na eleição de 1989, aos 32 anos. Lembro-me da especial comoção que tomou as ruas do bairro naquele período e da alegria contagiante das crianças que acompanharam os pais no dia de votação. Como parte da classe trabalhadora, tínhamos um candidato que falava nossa língua e evocava a persistente esperança.

Ganhei consciência política nesse ambiente de carências: aluguéis que subiam e nos obrigavam a mudar com frequência; a renda insuficiente para prover todas as necessidades da família. Meu pai era um homem conservador nos costumes, mas quando se tratava de política e valores de comunidade, seus ideais eram socialistas.

Presidente Lula recebe a faixa presidencial de representantes do povo brasileiro, no Palácio do Planalto - Adriano Machado - 1º.jan.23/Reuters

Durante minha adolescência, passei a observar suas convicções sem o mesmo entusiasmo da minha infância. Os telejornais vendiam um país de estabilidade e desenvolvimento econômico. Eu absorvia tais informações como verdade, o que aumentava ainda mais o anacronismo do pensamento de meu pai.

As sucessivas crises econômicas aumentaram nossas dificuldades. Foi assim que fui instado por professores, por leituras diversas, pelo meio em que vivia, a fazer uma análise crítica do lugar que ocupava na sociedade. Minha formação foi se aprofundando, mas isso não me tornou mais condescendente com meu pai. Considerava sua visão de mundo simplista, mais emoção do que razão, e havia um grande descompasso entre nossas visões de mundo, principalmente quanto aos costumes.

Mas nossas emoções convergiram quando assistimos juntos à primeira posse de Lula em uma velha TV a cores —a primeira que tivemos—, comprada 11 anos antes. Enquanto o presidente eleito subia a rampa, meu pai chorava, sem medo de ser julgado, enquanto eu enxugava minhas lágrimas com discrição.

Estávamos emocionados pela simbologia: era um de nós que subia a rampa do Palácio do Planalto. Compreendemos o significado daquele evento para o mundo em que vivíamos.

Os anos se passaram e celebramos os avanços sociais do governo, embora eu continuasse achando tudo muito pouco. Há uma urgência nos sonhos dos mais jovens, quase nunca correspondidos pelo pragmatismo da vida. Então, divergia ainda mais de meu pai quando o assunto era política. Nossos projetos de país só se "reencontraram" durante a campanha presidencial de 2006.

Quando Lula subiu pela segunda vez a rampa estavam lá os mesmos sentimentos e gestos, as lágrimas, e a sensação de que mais uma vez subíamos com ele a rampa do Planalto.

Em 2018, Lula foi retirado da disputa à Presidência por uma decisão judicial repleta de vícios. Eu e meu pai já estávamos em um novo momento. Com a experiência acumulada pelos anos, eu era capaz de compreender as expectativas dele.

Ele descobriu que estava doente e sofreu duplamente com a prisão do ex-presidente. Naquele instante, nossos pensamentos convergiram e a indignação se tornou familiar. Compartilhamos incertezas sobre o futuro do país e do que poderia nos ocorrer.

Meu pai tinha uma doença incurável. Coincidência ou não, sua saúde se deteriorou logo após a eleição. Dias depois, ele morreu.

No último domingo, recordei essa breve história da democracia no seio da minha família. A história individual se misturando à coletiva, e por sua vez à história do país. Foi a primeira eleição para presidente sem a presença de meu pai. Semanas antes, eu havia lamentado que não pudesse estar presente para se alegrar com a notícia de que talvez estivéssemos retomando às rédeas de nosso futuro.

Reunimos a família e assistimos à cobertura como um ritual de expurgação dos anos de horror do governo Bolsonaro. Vinte anos se passaram desde a primeira posse de Lula e tanta coisa havia mudado em mim e no mundo. As indelicadezas do destino e a dureza do tempo são capazes de embrutecer as emoções. Por mais que tivesse entusiasmado, não choraria como havíamos chorado no passado.

Eis que chega o momento de o presidente empossado subir a rampa. Ao seu lado estava a primeira-dama, Janja, mas não só. Estavam também a cadelinha Resistência, o cacique Raoni, do povo kayapó, Weslley Rodrigues, metalúrgico, Murilo Jesus, professor, Jucimara dos Santos e Flávio Pereira, voluntários no acampamento Lula Livre em Curitiba, Francisco Nascimento, jovem atleta, o influencer Ivan Baron e Aline Sousa, catadora de recicláveis.

Foi Aline que colocou a faixa no presidente eleito. Aquele pequeno grupo era um pouco da nossa diversidade étnica e social, os que devem ter vez e voz para que a democracia seja para sempre.

Quando percebi, a emoção era a mesma velha companheira a renovar as esperanças para um novo tempo.

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