Itamar Vieira Junior

Geógrafo e escritor, autor de "Torto Arado"

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Descrição de chapéu Futebol Internacional

Vini Jr. ensina que devemos erguer a cabeça e ir até o fim contra racismo

Este texto se deve à força humana que jogador revelou com seu gesto

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Nos últimos dias vi com frequência o rosto de Vini Jr. publicado e repostado nos sites de notícias e redes sociais. Uma dessas imagens tocaram fundo: Vini chora depois da violência generalizada que sofreu da torcida, dos atletas adversários e do árbitro.

Um estádio lotado vociferava insultos racistas, mas ele permanece de cabeça erguida e declara que vai até o fim por sua dignidade. A razão de ser deste texto se deve à força humana que Vini me ensinou com seu gesto.

Movimento negro faz protesto contra o racismo e em apoio ao jogador Vinicius Jr., alvo de ataques racistas no campeonato espanhol - Pedro Ladeira-25.mai.23/Folhapress

O evento relatado acima ocorreu na Europa branca e colonial, a mesma que edificou o empreendimento racista baseado na cor da pele, mas poderia ter sido nos Estados Unidos e em boa parte do mundo. Poderia ter ocorrido no Brasil, país com grande contingente populacional negro.

Na nossa "pigmentocracia", meu corpo pardo dificilmente seria comparado ao de um macaco, expressão destinada aos corpos retintos. Numa entrevista de emprego, minha pele clara, ainda que negra, seria capital simbólico que me distinguiria do meu irmão preto.

Se os pardos são encarcerados e enviados para apodrecerem nos presídios, os corpos retintos são exterminados nas ruas do país pelo Estado brasileiro. Ainda que a dor de Vini seja minha também, eu nunca terei a exata medida de habitar um corpo de pele retinta. Mesmo assim consigo me irmanar na dor de uma história comum.

Certa vez recebi um insulto racista de um professor branco que, incomodado com minhas perguntas, recordou que eu tinha "os dois pés na senzala". Senti uma dor grande e me calei, até mesmo porque meus colegas pardos riram da ofensa.

Ao mesmo tempo, esse ato de preconceito fez ruir a ilusão de que minha pele carregava certa passabilidade. Me assenhorar dessa verdade, não a de que eu tenho os dois pés na senzala onde encarceraram meus antepassados, mas a de que sou um herdeiro da diáspora africana, foi certamente a coisa mais importante que ocorreu na dimensão política de minha vida.

A pesquisadora Carla Akotirene, autora de "Interseccionalidade" (editora Jandaíra), nos lembra que o racismo é uma tecnologia de poder tão cruel que é capaz de dividir corpos negros. Personalidade ativa nas redes sociais e respondendo sempre com assertividade e doçura às perguntas que lhe dirigem, ela me recordou certa vez que quando retirarem o último corpo retinto da sala, toda violência racista se voltará para o corpo pardo, porque a versão mais atualizada do capitalismo ainda não prescinde do racismo.

Agora que temos alguma voz, nossa história recebeu o carimbo de identitarista. Pessoas brancas sempre autoglorificaram suas origens europeias, seus sobrenomes, o lugar que seus antepassados ocuparam na sociedade, todos atributos de identificação que exaltam uma identidade, mas os identitaristas somos nós.

Pessoas brancas são imbatíveis quando nos destinam adjetivos. Se rebatemos a piada racista, somos extremistas e estamos atacando a liberdade de expressão. Se escrevemos sobre nossas dores, somos maniqueístas, nunca será porque essa é a nossa história.

Acabei de colocar um romance na rua e nele mais uma vez segui meu propósito de narrar a história da minha gente, daqueles que me antecederam e daqueles que me cercam. Estou no meio literário há pouco tempo, mas já acumulei repertório suficiente para escrever uma etnografia desse grupo. É claro que eu esperava racismo por minha insubordinação de continuar a escrever. Esperava que alguém me lembrasse, como o professor branco, que meus pés jamais deveriam ter deixado a senzala.

Um jovem branco me perguntou se há literatura no Brasil além da "ladainha escravista". Se ele conhecesse realmente a literatura brasileira, saberia, numa breve passada de olhos nas livrarias e bibliotecas, que as prateleiras estão cheias de histórias da classe média branca do centro-sul do país. Mas por que resolveu implicar comigo? Eu sei a resposta, mas convido o leitor a exercitar seu raciocínio também.

O pacto da branquitude é implacável. Mesmo quando você não o nota, ele se faz presente. O editor branco escolhe a crítica branca para resenhar um romance atravessado pela raça e pelo colorismo. Eles precisam nos lembrar que na literatura brasileira não há espaço para nós, então o pacto é deixar a avaliação entre eles. Um livro conquistar um bom número de leitores —como ocorreu com "Quarto de Despejo" ou "Torto Arado"— ainda vai, mas dois já é demais.

Eu não quero me manifestar todas as vezes que cospem na minha cara, mas Vini Jr. me lembrou que precisamos erguer nossa cabeça, pois tê-la curvada nunca nos ajudou em nada.

Então vou contar para vocês os adjetivos que ganhei de uma professora branca em redes sociais simplesmente porque decidi ignorar a "cusparada": "sujeito" (alguém inferior que não pertence à sua classe e raça), "arrogante" (já vi o mesmo adjetivo destinado a outros corpos negros altivos, como Djamila Ribeiro, Luiza Bairros e Silvio Almeida) e "preguiçoso mental" (será que é um insulto xenófobo por eu ter nascido e ainda viver na Bahia?).

Eu teria muito mais para escrever, mas o espaço desta coluna não me permite. De chantagem à ameaça. A violência racial não nos dá um dia de trégua. Mas como eu continuo a acreditar no humano, deixo como dica um livro que acaba de ser publicado e já faz parte do meu letramento: "Sobrevivendo ao Racismo" (Papirus 7 Mares), de Luana Tolentino.

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