Não me causa perplexidade a hierarquização de saberes derivada de um projeto de ciência e de pensamentos coloniais. É muito comum em certo meio —entre acadêmicos e intelectuais da classe média urbana— considerar que pessoas que não passaram por educação superior, lavradores, quilombolas e indígenas seriam incapazes de produzir intelectualidade.
"A Terra Dá, a Terra Quer" (editora Ubu), de Antônio Bispo dos Santos, ou apenas Nêgo Bispo, como é conhecido, é a prova de que há uma produção importante de saberes dos que sempre estiveram à margem.
Neste breve ensaio, Dos Santos disserta sobre a fonte de sua intelectualidade. As referências aos próprios antepassados são abundantes, mas o que aparentemente é simples se torna importante fonte de conhecimento.
A partir da cosmovisão de mundo de sua gente, Dos Santos nos dá um importante testemunho das engrenagens que continuam a subalternizar o outro. Entenda-se como engrenagens a colonialidade que permanece entre nós, mesmo quando não existe uma dominação entre Estados-Nação nos seus moldes clássicos.
Adestrando o gado nas terras de sua comunidade, Dos Santos relaciona a atividade aos métodos de dominação do colonialismo: "Tanto adestrador quanto o colonizador começam por desterritorializar o ente atacado quebrando-lhe a identidade, tirando-o de sua cosmologia, distanciando-o de seus sagrados, impondo-lhes novos modos de vida e colocando-lhes outros nomes". Dessa forma, apaga-se a memória para constituir uma nova que atenda à lógica de dominação.
Conhecendo a lógica de dominação por empiria, Dos Santos passa a contrariar as "palavras coloniais" com uma "guerra de denominações", com o objetivo de enfraquecê-las. Daí surge um novo léxico para subverter a colonialidade pela língua.
Se a herança colonial mantém entre nós a palavra "desenvolvimento", e a palavra é usada para expropriar os subalternos continuamente em nome de um objetivo maior, então é preciso revelar que "desenvolvimento" desconecta pessoas, territórios e saberes.
Não interessa a Dos Santos o "desenvolvimento", e sim o "envolvimento" que podemos ter com a terra, os seres viventes e a nossa comunidade.
Dos Santos também substitui "desenvolvimento sustentável" por "biointeração"; "coincidência" por "confluência"; "sintético" por "orgânico"; "dinheiro" por "compartilhamento"; "colonização" por "contracolonização". Outro exemplo importante são as gírias das favelas que ampliam a língua com "palavras potentes" que os colonizadores não compreendem.
A insubordinação às engrenagens do colonialismo é chamada por Dos Santos de "contracolonialismo". A não aceitação se constituiu numa defesa prática da vida, e sociedades indígenas e africanas fizeram isso desde sempre.
Para Dos Santos, o que é modo de vida indígena, banto, iorubá, quilombola pode ser agrupado na denominação contracolonial. Modos de vida sozinhos, sem conexão, não enfraquecem o colonialismo. O antídoto à colonialidade seria celebrar e compartilhar um modo de vida contracolonial que atravessa todas as esferas da vida.
A arquitetura é uma dessas esferas, capazes de desconectar por completo pessoas e territórios. Os cosmos do quilombo e da favela são exemplos de arquiteturas que consideram a vida humana. Uma casa num quilombo precisa ter um quintal com espaço porque as gerações futuras irão habitar os espaços contíguos à casa original. Na favela, a laje cumpre essa função.
As casas nesses dois territórios costumam ser erguidas em mutirão porque a solidariedade é um traço vital da contracolonialidade. O quintal da casa do quilombo é um espaço de vida onde se planta o alimento próximo à cozinha. É o lugar onde as crianças se educam —aprendem a plantar, colher, cozinhar.
Dos Santos critica a arquitetura do programa Minha Casa, Minha Vida, que desconsidera todo ethos comunitário em prol da economia e de um modelo de construção contrário à vida.
"A casa tem que ser uma parte dos nossos corpos", considera. Não se constrói uma casa sem considerar o movimento do sol, dos ventos, nem as chuvas. A casa precisa ser posicionada numa relação cosmológica com tudo à sua volta: roças, estradas e vizinhos.
Ler "A Terra Dá, a Terra Quer" me conectou ao pensador Antônio Bispo dos Santos. De lá do Quilombo Saco Curtume, interior do Piauí, Dos Santos registra na escrita e na oralidade a sabedoria de seu povo.
Sabedoria essa que pode ser vital para nos levar a um futuro que nos restitua parte da existência, que continua mais do que nunca em risco.
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