Itamar Vieira Junior

Geógrafo e escritor, autor de "Torto Arado"

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Itamar Vieira Junior

Mãe Bernadete, presente!

Ialorixá e líder quilombola, assassinada na Bahia, foi exemplo de coragem para mudar o mundo

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"Eu quero que você escreva minha história", disse Bernadete Pacífico, ialorixá e líder, ao descobrir que eu escrevia. Conheci sua luta há mais de dez anos nas dependências da Superintendência Regional do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) da Bahia e depois em Pitanga de Palmares, território quilombola localizado em Simões Filho, Região Metropolitana de Salvador.

Quando soube do seu brutal assassinato ontem à noite, no terreiro onde morava, recordei essa e muitas outras histórias dos nossos anos de convivência. Aos 72, dona Bernadete, como a chamávamos, poderia estar aposentada e ter se retirado da militância depois de tantos anos de serviços prestados à causa. Mas preferiu estar na linha de frente, reivindicando a titulação do seu território e políticas públicas para sua comunidade.

Foto mostra mulher negra sentada em uma cadeira, Ela usa um turbante e veste uma roupa colorida
Bernadete Pacífico, líder quilombola na Bahia e coordenadora da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos) - Conaq/Divulgação

Dona Bernadete era incansável na defesa do reconhecimento e da regularização fundiária do território quilombola onde vivia. Foi lá também que, em 2017, viu seu filho Binho do Quilombo, também líder comunitário, ser assassinado. O crime jamais foi esclarecido, mesmo com a resiliência dessa mãe visitando o Ministério Público, delegacias de polícia e órgãos de direitos humanos e de Justiça, mesmo encontrando autoridades em Brasília e em outros estados.

Vê-la tão destemida exigindo resposta para esse crime bárbaro fez com que eu e muitos outros temêssemos por sua vida, mas sua postura era um exemplo de que é preciso cultivar a coragem para mover e mudar o mundo.

Somente em 2017, no estado da Bahia, oito quilombolas foram mortos. José Raimundo de Souza Junior, da comunidade de Jiboia, seis pessoas em uma chacina em Iúna, no município de Lençóis, e Binho do Quilombo, seu filho.

O Brasil não protege nem ampara os que lutam por dignidade humana e justiça. Foi assim com João Pedro Teixeira, Margarida Alves, Chico Mendes, a irmã Dorothy Stang e Marielle Franco. São tantos os que tombaram nesse caminho por equidade e reparação que não caberiam em todas as páginas deste jornal.

Nos falamos duas vezes por telefone na semana passada. Dona Bernadete queria minha orientação sobre o processo da comunidade, se queixava da morosidade do Estado e dizia que queria viver para ver tudo ser concluído.

Na última vez que estive em Pitanga Palmares, em dezembro de 2021, fui recebido com um almoço e muitos risos. Apesar de toda a dor que ainda pairava sobre a família com a impunidade pela morte de seu filho, ela cultivava o bom humor, interpelava políticos e autoridades por onde passava, cativava todos com sua firmeza e obstinação.

A certeza da impunidade —a morte de Binho do Quilombo jamais foi esclarecida e os responsáveis continuam soltos— abriu caminhos para que mais um dos nossos tombasse novamente. O mesmo Estado que extermina crianças, negros, indígenas e pobres é o Estado incapaz de esclarecer o crime.

A necropolítica não está refletida apenas nos assassinatos diretos praticados pelo Estado, mas também na falta de resposta para os crimes cometidos contra as populações vulneráveis. Reflete também na burocracia sem fim e na falta de investimento que faz com que conflitos diversos, como a disputa por terra em Pitanga de Palmares, se arrastem sem nenhuma solução no horizonte.

Gostaria de poder escrever sobre a resiliência, a coragem e o inquebrantável espírito humano. Para evocar a memória de dona Bernadete, eu escrevo, mas gostaria que o final dessa história fosse outro: vê-la recebendo o título do seu território, vê-la em paz com a responsabilização e a punição dos responsáveis pela morte de seu filho. Não gostaria que essa história terminasse como todas as que antecederam.

Gostaria de escrever que o tempo está mudando, que a violência fundiária, religiosa e racial ficou no passado, mas a brutalidade que vitimou dona Bernadete me diz que o Brasil continua encalhado no seu passado tenebroso.

Anos atrás, dona Bernadete me deu um oxé —o machado de Xangô— esculpido por Binho do Quilombo. Essa ferramenta está até hoje sobre a minha mesa de trabalho para me recordar que é preciso perseguir a Justiça.

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