Itamar Vieira Junior

Geógrafo e escritor, autor de "Torto Arado"

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Itamar Vieira Junior

Escrever para quê?

Escrevo para tornar a vida de uma líder quilombola responsabilidade de todos os que defendem um país mais justo

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Este deveria ser um texto sobre o poder da literatura de nos deslocar para o lugar do outro. Como leitor e autor compreendo que esse talvez seja um dos sentidos mais proeminentes da ficção.

Deslocar-se para o lugar do outro expande nosso horizonte, por natureza limitado, e reestabelece entre nós o exercício da alteridade. Sendo assim, é provável que, em um mundo onde vige o altericídio, a incapacidade de coexistir com o diferente, a literatura nos devolva algo importante. Mas, às vezes, a ficção parece ser apenas um grito no vão da vida, sem qualquer utilidade ou função, como dizem os que sempre tiveram voz.

Capela em quilombo em Cachoeira, no Recôncavo Baiano - Rafaela Araújo - 17.out.23/Folhapress

Enquanto escrevia para esta coluna, recebi uma mensagem de uma amiga, professora, liderança da comunidade quilombola de Iúna, localizada na Chapada Diamantina. Uma mensagem que me comoveu, porque neste país a vida dos que foram historicamente subalternizados permanece em risco, desde o nosso passado colonial e escravista que continua a nos assombrar.

Precisei interromper minhas intenções iniciais para escrever sobre o que importa, sobre o agora, sobre os ameaçados, já que quem escreve, penso, deve refletir sobre seu tempo.

Na mensagem, ela me relatava que a casa onde vive tinha sido incendiada. Tinha perdido quase tudo, restando alguns poucos utensílios da cozinha. Para os que vivem na comunidade quilombola, o incêndio criminoso transmite uma mensagem importante: a vida dos que defendem justiça social para os vulneráveis da história continua em risco.

A literatura se alimenta da capacidade de observarmos o mundo à nossa volta, de evocarmos a memória e de, também, imaginarmos vidas e histórias. Essa liderança —que não se sente segura nem mesmo para revelar seu nome — é uma das muitas pessoas que me ensinaram sobre nós mesmos, sobre a relação dos quilombolas com a terra e que me fez conhecer o Brasil em sua diversidade e profundidade.

Graças à sua delicada paciência e capacidade de ensinar e envolver seus aprendizes, aprendi sobre o jarê, sobre o sistema de morada que substituiu o sistema escravista em muitas regiões do país após a Abolição.

Muitos não sabem, mas seu rosto e sua voz de liderança se fundem aos de Bibiana, personagem de "Torto Arado", na livre adaptação teatral da premiada diretora Christiane Jatahy —"Depois do Silêncio"—, que já percorreu mais de dez países na Europa e continua a encontrar seu público narrando uma das faces do drama fundiário brasileiro. Mesmo tendo emprestado seu corpo para contar o Brasil, ela se encontra em risco.

Enquanto eu escrevia o romance, a mesma comunidade viveu um dos eventos mais tristes de sua história quando seis trabalhadores rurais foram assassinados em circunstâncias nunca esclarecidas. Muitos precisaram se afastar temporariamente do território onde nasceram e cresceram, sem que o poder público fizesse o suficiente para protegê-los.

A literatura registrou nas páginas do livro o drama humano que nos assola de forma aviltante, mas certamente não é capaz de atos práticos para proteger os que precisam ser protegidos.

A inércia do Estado brasileiro para a regularização fundiária dos territórios quilombolas contribui para o acirramento dos conflitos e o sentimento de vale-tudo que põe a vida de muitos em risco. Em agosto do ano passado, escrevi sobre o assassinato de Bernadete Pacífico, outra ativista e liderança quilombola.

Semanas antes do assassinato, Bernadete relatou à então presidente do STF as ameaças que sofria. Nada disse foi suficiente para proteger sua vida. É preciso que as autoridades compreendam os riscos e se antecipem às ameaças que têm ceifado vidas desde que o Brasil é Brasil.

Foto mostra mulher negra sentada em uma cadeira, Ela usa um turbante e veste uma roupa colorida
Bernadete Pacífico, líder quilombola na Bahia e coordenadora da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos) - Conaq/Divulgação

Se a literatura pode suscitar a empatia dos que leem, escrever sobre a realidade, sobre os que têm suas vidas ameaçadas pode nos convocar à responsabilidade pelos que continuam marcados para morrer?

Escrevo para tornar a vida dessa liderança responsabilidade de todos nós que nos importamos com o outro e defendemos um país mais justo para todos.

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