Ivan Marsiglia

Jornalista e bacharel em ciências sociais, Ivan Marsiglia é autor de “A Poeira dos Outros”.

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Gasolina na fogueira

Crise que incinerou filme do país no exterior foi criada e amplificada via Twitter

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Aquela que foi descrita pelo diplomata e ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero como a maior crise diplomática do país em 50 anos não repercutiu apenas no Twitter: ela foi, em grande medida, criada e amplificada por manifestações de autoridades na plataforma.

Na avaliação feita por Ricupero em entrevista ao jornal O Globo na sexta-feira (23), a crise que põe em risco o tratado de livre-comércio entre a União Europeia e o Mercosul se deve menos às imagens de queimadas na Amazônia divulgadas mundo afora nas últimas semanas que ao posicionamento do governo brasileiro e seus “ataques a países e líderes que pediram solução para a questão ambiental”. 

Um tuíte feito na véspera (22) pelo presidente francês foi a faísca que incendiou de vez os ânimos bolsonaristas. @EmmanuelMacron “Nossa casa queima. Literalmente. A Amazônia, o pulmão do nosso planeta que produz 20% do nosso oxigênio, está em chamas. É uma crise internacional. Membros do G7, vejo vocês em dois dias para falar sobre esta emergência. #ActForTheAmazon”

No mesmo dia, Bolsonaro e um pelotão de primeiro escalão do governo abriram fogo pelo Twitter contra Macron. @jairbolsonaro “Lamento que o presidente Macron busque instrumentalizar uma questão interna do Brasil e de outros países amazônicos para ganhos políticos pessoais. O tom sensacionalista com que se refere à Amazônia (apelando até para fotos falsas) não contribui em nada para a solução do problema.”

O ex-comandante do Exército brasileiro foi além: @Gen_VillasBoas “Com uma clareza dificilmente vista, estamos assistindo a mais um país europeu, dessa vez a França, por intermédio do seu presidente Macron, realizar ataques diretos à soberania brasileira, que inclui, objetivamente, ameaças de emprego do poder militar.”

O tom exaltado, parecendo ignorar que parte da Amazônia se encontra na Guiana Francesa, território ultramarino da França, surpreendeu os que viam em Villas Bôas uma voz moderada na base do governo.

O deputado e filho Zero Três, que trabalha por sua nomeação ao cargo de embaixador do Brasil em Washington, não se constrangeu em marcar a conta do líder francês na plataforma e compartilhar um vídeo chamando-o de “idiota”. @BolsonaroSP “Recado para o @EmmanuelMacron:”

Tampouco o chanceler brasileiro se dispôs a pôr água na fervura: usou o termo “mentira” e repisou o tema de uma suposta conspiração internacional de esquerda. @ernestofaraujo “1/Por que o Brasil está sendo alvo de uma campanha internacional tão feroz e injusta no tema ambiental? Simples. Porque o governo do PR Bolsonaro está reerguendo o Brasil. A ‘crise ambiental’ parece ser a última arma que resta no arsenal de mentiras da esquerda para abafar esse fato.”

‘Gigantes morais’ 

No dia seguinte (23), o escritor e jornalista @sergiotodoprosa comentou com ironia: “O que consola é saber que, no momento em que o Brasil enfrenta sua maior crise internacional em meio século (segundo Ricupero) ou século e meio (a contar da pressão contra a escravidão), temos na proa do Itamaraty um gigante intelectual e moral como Ernesto Araújo.”

A demonstração definitiva de “grandeza moral”, porém, viria do próprio presidente brasileiro, ao subscrever em outra rede social um comentário depreciativo em relação à idade e beleza da primeira-dama da França. No registro do colunista do G1 @Mleitaonetto “Bolsonaro zomba de Brigitte Macron em comentário no Facebook e é acusado de sexismo.”

Em sua vertigem piromaníaca, o governo só pareceu acordar depois da entrada em cena como bombeiro de uma das maiores lideranças do agro nacional. Em entrevista à rede @bbcbrasil, o ex-ministro da Agricultura Blairo Maggi foi categórico: “‘Teremos que refazer a imagem do Brasil no exterior’, diz ex-ministro da Agricultura @blairomaggi”

Em entrevista na segunda (26) no âmbito da cúpula do G7, o chefe de Estado francês classificou de “extremamente desrespeitosas” as palavras de Bolsonaro. “Penso que as mulheres brasileiras sentem vergonha ao ler isso”, disse Macron. “Como tenho grande amizade e respeito pelo povo brasileiro, espero que tenham logo um presidente que se comporte à altura do cargo.”

No mesmo dia, o comentarista da GloboNews @MarceloLins68 tuitou sobre o rescaldo do incêndio: “Macron foi duro, o governo brasileiro, grosseiro. O G-7 suavizou a postura francesa, os ataques brasileiros ficaram mais virulentos. E temos a mais grave crise Brasília-Paris em décadas.”

O ‘correntão’ 

Compartilhado no Twitter em forma de thread (fio) pelo cientista político Alberto Carlos Almeida, o texto da brasileira Erika Berenguer —pesquisadora do Instituto de Mudanças Ambientais da Universidade de Oxford que estuda há uma década os impactos do fogo e da extração da madeira na Amazônia— atesta a origem nada acidental das queimadas que devastam a floresta e a imagem do Brasil lá fora.

 

@albertocalmeida “Espalhem: Texto da Erika Berenguer, uma das maiores especialistas em fogo na Amazônia que conheci. ‘Há 12 anos eu trabalho na Amazônia e há 10 pesquiso sobre os impactos do fogo na maior floresta tropical do mundo. Meu doutorado e meu pós-doutorado foram com isso e já vi a”

@albertocalmeida “floresta queimando sob os meus pés mais vezes do que gostaria de lembrar. Me sinto então na obrigação de trazer alguns esclarecimentos enquanto cientista e enquanto brasileira, já que pra maioria das pessoas a realidade amazônica é tão distante: Primeiro, e mais importante, é”

@albertocalmeida “que incêndios na floresta amazônica não ocorrem de maneira natural – eles precisam de uma fonte de ignição antrópica ou, em outras palavras, que alguém taque o fogo. Ao contrário de outros ecossistemas, como o Cerrado, a Amazônia NÃO evoluiu com o fogo e esse NÃO faz parte de sua”

@albertocalmeida “dinâmica. Isso significa que quando a Amazônia pega fogo, uma parte imensa de suas árvores morrem, porque elas não tem nenhum tipo de proteção ao fogo. Ao morrerem, essas árvores então se decompõem liberando para a atmosfera todo o carbono que elas armazenavam, contribuindo assim”

@albertocalmeida “pras mudanças climáticas. O problema nisso é que a Amazônia armazena carbono pra caramba nas suas árvores, a floresta inteira estoca o equivalente a 100 anos de emissões de CO2 dos EUA, então queimar a floresta significa colocar muito CO2 de volta na atmosfera. Os incêndios,”

 

@albertocalmeida “que são necessariamente causados pelo homem, são de 2 tipos: aquele usado pra limpar o roçado e o usado pra desmatar uma área; o que estamos vendo é do segundo tipo. Para desmatar a floresta, primeiro corta-se ela, normalmente com o que é chamado de correntão – dois tratores”

 
 

@albertocalmeida “interligados por uma imensa corrente, assim com os tratores andando, a corrente entre eles vai levando a floresta ao chão. A floresta derrubada fica um tempo no chão secando, geralmente meses a dentro da estação seca, pois só assim a vegetação perde umidade suficiente pra ser”

 

​@albertocalmeida “possível colocar fogo nela, fazendo toda aquela vegetação desaparecer, e sendo então possível de plantar capim. Os grandes incêndios que estamos vendo agora e que fizeram o céu de São Paulo escurecer representam então esse último passo na dinâmica do desmatamento – transformar em”

@albertocalmeida “cinzas a floresta tombada. Além da perda de carbono e de biodiversidade causadas pelo desmatamento em si, existe também uma perda mais invisível – aquela que ocorre nas florestas queimadas. O fogo do desmatamento pode escapar para áreas não desmatadas e caso esteja seco o”

@albertocalmeida “suficiente, queimar também a floresta em pé. Uma floresta que então passa a estocar 40% a menos de carbono do que anteriormente ela armazenada e, de novo, carbono esse que foi perdido para a atmosfera. As florestas queimadas deixam de ser de um verde luxuriante, esbanjando vida”

@albertocalmeida “e a cacofonia de sons dos mais diversos bichos se silencia – a floresta adquire tons de marrons e cinzas, com os únicos sons sendo aqueles de árvores caindo. A estação seca na Amazônia sempre trouxe queimadas e há anos tento chamar a atenção pros incêndios florestais, como os”

@albertocalmeida “de 2015, quando a floresta estava excepcionalmente seca devido ao El Niño. O que tem de diferente esse ano é a dimensão do problema. É o aumento do desmatamento aliado aos inúmeros focos de queimada e ao aumento das emissões de monóxido de carbono (o que mostra que a floresta”

@albertocalmeida “está ardendo), o que culminou na chuva preta em São Paulo e no desvio de vôos de Rondônia pra Manaus, cidades situadas a meros mil quilômetros de distância. E o mais alarmante dessa história toda é que estamos no começo da estação seca. Em outubro, quando chegar ao auge do”

@albertocalmeida “período seco no Pará, a tendência infelizmente é da situação ficar muito pior. Em 2004 o Brasil chegou a 25000 km2 de floresta desmatados no ano. De lá pra cá reduzimos essa taxa em 70%. É possível sim frearmos e combatermos o desmatamento, mas isso depende tanto da pressão da”

@albertocalmeida “sociedade quanto da vontade política. Depende do governo assumir a responsabilidade pelas atuais taxas de desmatamento e parar com discursos que promovam a impunidade no campo. É preciso entender que sem a Amazônia não há chuva no resto do país, seriamente comprometendo nossa”

@albertocalmeida “produção agrícola e nossa geração de energia. É preciso entender que a Amazônia não é um bando de árvore juntas, mas sim nosso maior bem. É de uma dor indescritível ver a maior floresta tropical do mundo, meu objeto de estudo, e meu próprio país queimarem. O cheiro de churrasco”

@albertocalmeida “acompanhado do silêncio profundo numa floresta queimada não são imagens que vão sair da minha cabeça jamais. Foi um trauma. Mas na escala atual, não vai precisar ser pesquisador ou morador da região pra sentir a dor da perda da Amazônia. As cinzas do nosso país agora buscam a”

@albertocalmeida “gente até na grande metrópole.”

 
 

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