Jaime Spitzcovsky

Jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e Pequim.

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Jaime Spitzcovsky

A morte do herói do tanque de guerra

Morreu, aos 98 anos, David Dushman, um dos soldados soviéticos a libertar o campo de extermínio de Auschwitz, em 1945

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O calendário apontava 27 de janeiro de 1945 e, em meio ao ataque, o soldado soviético David Dushman não hesitou. No comando de um T-34, jogou o tanque contra a cerca eletrificada do campo de extermínio de Auschwitz, principal engrenagem da máquina mortífera nazista.

A ação intrépida do jovem militar, então com 21 anos, apressou a desmontagem de um cenário trágico, do extermínio de cerca de 1,1 milhão de pessoas, das quais mais de 90% eram judeus. A destruição da cerca abriu caminho para a invasão de soldados do 60° Exército, testemunhas iniciais dos horrores de Auschwitz.

Portão na entrada do antigo campo de concentração de Auschwitz, na Polônia
Portão na entrada do antigo campo de concentração de Auschwitz, na Polônia - Kacper Pempel - 25.jan.21/Reuters

David Alexandrovich Dushman, de origem judaica, morreu no último dia 5, aos 98 anos. Após atravessar a Grande Guerra Patriótica, como os russos se referem ao conflito contra os hitleristas, o militar com mais de 40 condecorações se dedicou à esgrima e a palestras sobre o Holocausto, a fim de combater visões negacionistas empenhadas em apagar as atrocidades do nazismo.

Dushman dividiu as últimas décadas de sua vida entre a Áustria e a Alemanha. Morreu em Munique, seu lar desde 1996, e onde testemunhou, na Olimpíada de 1972, o ataque terrorista responsável pelo assassinato de 11 atletas israelenses. À época, o ex-militar era treinador da equipe soviética de esgrima.

Voluntário no início da trajetória no Exército Vermelho, Dushman foi ferido em combate três vezes e participou das batalhas de Stalingrado e Kursk. E relatava que, dos 12 mil integrantes de sua divisão, apenas 69 sobreviveram.

Quando morei em Moscou, entre 1990 e 1994, trabalhando como correspondente da Folha, certa vez entrevistei o general Vassily Petrenko, um dos comandantes da ofensiva contra Auschwitz. Construímos, após o contato jornalístico, amizade sólida e passei a visitá-lo com frequência.

Em almoços carregados por culinária russa, invadíamos as tardes conversando sobre a turbulenta transição à era pós-soviética e sobre reminiscências dos tempos da guerra. O endereço de meu anfitrião indicava uma área habitada por veteranos do Exército Vermelho: praça da Vitória, 1.

Petrenko morreu em 2003, aos 91 anos. Assim como Dushman, dedicou parte importante de sua vida, após deixar a farda, a combater a ameaça do neonazismo e do fascismo, com a publicação de livros, entrevistas e palestras.

Em suas falas, Petrenko ressaltava o papel do general Pavel Kurotchkin, comandante do 60° Exército e responsável por, sem aguardar sinal verde de Moscou, acelerar o avanço das tropas soviéticas rumo a Auschwitz, para estancar o massacre.

O tenente Ivan Martynushkin, aos 21 anos, também participou da ofensiva em janeiro de 1945. E, como seus camaradas Dushman e Petrenko, mergulhou em ações para relatar e registrar atrocidades cometidas pelo nazismo.

Em entrevista no ano passado, ao site Spiegel International, Martynushkin relatou a experiência de janeiro de 1945, às vésperas da libertação, ao avistar Auschwitz. “Nosso primeiro pensamento era que devia ser uma base militar. Já estava escuro, e não avançamos”, relembrou. “Na manhã seguinte, nossa primeira tarefa era averiguar a região e, enquanto fazíamos isso, vimos pessoas se movimentando atrás da cerca. Num primeiro momento, ficamos preocupados, mas percebemos que eles acenavam para nós. Foi então que entendemos: eles são prisioneiros”.

Em um momento de avanço global de discursos de ódio, de revisionismos e de falsificações históricas, ganha ainda mais importância amplificar as ações educativas e políticas de Dushman, Petrenko e Martynushkin. Trata-se de uma exigência do século 21.

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