Janio de Freitas

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Preto no branco

Reações ao texto de Risério trouxeram os raríssimos ares de debate público

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Viva a turbulência causada pelo antropólogo Antonio Risério ao defender, na Folha, a existência de racismo de negros contra os brancos. As reações trouxeram os raríssimos ares de debate público. Ainda que desequilibrado nas partes divergentes, feito mais de acusações do que argumentos e com um desvio temático não menos trovejante.

Os negros do Brasil têm todo o direito, ainda por hoje e não pelos antepassados, aos piores sentimentos em sua avaliação dos brancos. Tal como os negros dos Estados Unidos e da África, além de numerosas comunidades menores. Por isso, creio, no quesito racismo negro seria necessário, antes de tudo, definir-lhe com nitidez a essência. Ficar no "neorracismo identitário" é genérico demais, fluido demais para sustentar uma caracterização moral e cultural tão pesada.

O ressentimento e a raiva, por exemplo, induzidos pela discriminação e por tantas formas de opressão humilhantes, não são necessariamente racismo. Não seria raro nem difícil reconhecer-lhes até uma defesa instintual e humanamente sadia. Ao passo que o racismo teria componentes mais elaborados na formação e na manifestação.

Ilustração de rosto masculino dividido no meio, costurado, com a boca aberta, como se gritasse. De um lado ele é negro, de cabelos pretos e olhos castanhos e do outro, loiro de olhos azuis.
Ilustração de Pogo Alves para Ilustríssima de 16.jan.2022 - Pogo Alves

O debate reativo a Risério mostra mais uma vez quanto o racismo brasileiro, que não se limita ao negro, é tema incendiário. E também mostra o avanço negro, instigado pela Constituição de 88, em muitos espaços e sonoridades. Para a "elite" negra, a desigualdade adquiriu características próprias, em nada compartilhadas pelos demais. A estes milhões, eventuais apoios são de pioneiros, a exemplo de Luiza Trajano e seu magazine.

É deplorável, por isso, que não haja dos já vitoriosos mais do que a persistência na crítica e nas acusações de racismo, sem ação efetiva de luta contra o racismo econômico e social. Para um exemplo que represente todos, a menor remuneração a negros por serem negros, declarada até por meios oficiais, é tão instituída quanto monstruosa —uma deformação não apenas socioeconômica, mas também da qualidade humana de quem a pratica.

A aspereza de algumas reações a Risério e a outros comentaristas não foi de debate. O problema é grave demais, enraizado demais, tem dimensões e complexidade demais. É compreensível que se preste a extravasar ímpetos reprimidos. O racismo está entre os males que exigem mesmo um enfrentamento vigoroso, furioso até, o velho e esquecido vai-ou-racha de tantos passos civilizatórios. Mas não é preciso que alguns mal-entendidos fiquem pelo caminho.

Reconheço-me como crítico inconveniente, desde sempre, de todos os jornais que conheci. Não me contive nessa atitude, nem dela me arrependo, por entendê-la em todos os sentidos essencial a uma atividade dada a não fazer o que cobra. Pouco caprichosa e presa a vícios caquéticos. Na grande maioria do jornalismo mundo afora, o leitor/espectador é entidade de interesse secundário, ou menos. Há um estranho prazer em ser jornalista, não como o do médico ou do arquiteto. E, em todas as línguas, esse prazer parece bastar-nos.

A publicação me pareceu correta. Várias críticas atribuíram-na à busca de sensacionalismo pela Folha. Desde muito tempo, a Folha tem, sim, uma queda por polêmicas e questões com potencial sensacionalista. É fruto da ideia de que assim afirma independência e neutralidade aos olhos dos leitores. É engano. O resultado comum das polêmicas é satisfação de um lado compensada pelo desagrado do outro. Na Folha, a neutralização mútua tem ficado bem à vista em manifestações de leitores.

No caso do artigo de Risério, é certo que não houve intenção viciosa. Já porque o texto não oferecia o conveniente para tanto. Seu título no jornal foi até anódino,"Neorracismo identitário". O sensacionalismo precisa de um título atraente ou, no mínimo, acessível ao leitor, digamos, médio. Não do teor acadêmico adotado, universitário, que há bastante tempo é outro desentendimento da Folha com o jornalismo.

Diretor de Redação, Sérgio Dávila ficou confundido com o cargo, ou com a maneira como, a seu ver, deve exercê-lo. Dávila recebeu pronta a inflexão da Folha —decisão empresarial— para os limites do centro-direita. Se o jornal ali está em quarentena, por um equívoco analítico e de composição da equipe, ou se ali está para ficar, não foi definido. Mas o reconhecimento desse erro estratégico, que renegou a busca de equilíbrio consagradora do jornal, não inclui tolerância com o racismo, qualquer racismo. Nem com outros horrores do gênero.

Tem havido alguma censura interna, sim, seletividade ideológica, idiossincrasias, coisas que prejudicam mais o jornal do que as vítimas. Mas antecedem Sérgio Dávila, que, a ser criticado, pode sê-lo por não ter atacado (ainda?) essa realidade. Às vezes, até por defendê-la como convém ao seu cargo. Assim é a minha visão, da Folha que conheço há mais de 40 anos, de uma pessoa que conheço há quase outro tanto, e deste momento admirável.

A turbulência decorrente do tal artigo é muito benfazeja. Fez transbordarem conceitos e sentimentos reprimidos, abertura para mais. Fará bem aos leitores. E fez um bem incalculável ao jornalismo brasileiro: o manifesto com cerca de 200 signatários da Folha, questionando os espaços dados a posições racistas e outras de semelhante indignidade, as escolhas de colaboradores de vezo antidemocrático, já é um marco, como disse Cristina Serra, tão brilhante. Os manifestantes vêm dizer que são jornalistas com vida, são gente, não são robôs. São pessoas, são jornalistas que querem jornalismo. E querem a Folha viva como Folha. Sua atitude lúcida e corajosa é um despertar luminoso.

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