João Wainer

Cineasta e fotógrafo, venceu o prêmio Esso de 2013 pela cobertura dos protestos de rua no país e é autor dos documentários "Junho" e "PIXO".

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João Wainer

A fome é só o começo

De volta à Folha, 25 anos depois estou falando da mesma fome que vi lá atrás e que não poderia existir em 2021

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Me divido entre as duas telas abertas sobre a mesa do escritório neste domingo de trabalho. Em uma delas lido com a enorme responsabilidade de escrever o texto de estreia desta coluna na Folha. Na outra, me deparo com a tragédia da fome enquanto finalizo um vídeo para a campanha de arrecadação de alimentos liderada pela Coalizão Negra por Direitos. A data de entrega de ambos é esta segunda, dia 19.

Na tela em que faço os últimos ajustes no vídeo, um trecho da poesia “Tem gente com fome” de Solano Trindade é declamado de forma insistente por artistas como Chico Buarque, Gilberto Gil, Zeca Pagodinho, Zezé Motta e também por ativistas e outras lideranças nacionais.

Se o governo atua mal, a sociedade se organiza para fazer o que pode. Sem esse suporte do terceiro setor, de iniciativas individuais e de empresas que estão na linha de frente do combate à fome movendo montanhas para que as pessoas possam comer, é bem possível que o país já tivesse entrado em colapso.

O vídeo está quase pronto e agora volto a me debruçar sobre o texto da Folha. Me lembro que vi de perto a fome, pela primeira vez, quando comecei no jornal, aos 19 anos, como repórter fotográfico, em 1996.

Não foi no sertão castigado pela seca nem naqueles cantos do país em que o Estado não chega. Foi durante uma reportagem na zona sul de São Paulo, periferia da maior cidade do Brasil, a poucos quilômetros da Faria Lima, uma singela avenida de prédios espelhados que concentra parte significativa do PIB brasileiro.

Vinte e cinco anos depois estou aqui de volta a essa agora centenária Folha, cheio de cabelos brancos olhando a cidade da janela de casa enquanto escrevo um texto e finalizo um vídeo falando da mesma fome que presenciei lá atrás e que não poderia jamais ainda existir em 2021.

Que o mundo é injusto, isso a gente sabe, mas, de todas as formas de injustiça, a fome certamente é uma das piores. Sua existência não pode ser tolerada em um país cheio de riquezas como esse, onde nunca faltou dinheiro para salvar bancos, empresas ou para emendas parlamentares quando alguns poucos consideram necessário.

Nas discussões dos últimos meses sobre o Orçamento de 2021 em tramitação no Congresso, a fome, que por motivos óbvios deveria ser a prioridade de todos, foi ofuscada por algo muito mais importante para os políticos. As próximas eleições.

Permitir que 125 milhões de pessoas vivam em situação de insegurança alimentar é cruel, mas não deixa de ser também um reflexo da sociedade que somos. Um país autoritário e violento, que exclui muito mais do que inclui, quase o oposto da imagem do povo cordial que tentaram nos convencer que somos, como mostrou de forma brilhante a professora Lilia Moritz Schwarcz em seu livro “Sobre o Autoritarismo Brasileiro”, da Companhia das Letras.

A fome é apenas mais um sintoma de um quadro gravíssimo e com enorme potencial destrutivo.

Sabemos que não dá para esperar muito desse governo, mas enquanto aguardamos o próximo, nos resta arregaçar as mangas e ajudar quem está com fome do jeito que pudermos, seja com dinheiro, trabalho, tempo ou contatos. Sempre tem alguém precisando, sempre tem algo que a gente pode fazer.

O vídeo da Coalizão, que terminei agora, entra no ar nesta terça. A campanha é uma das formas de ajudar. Existem muitas outras. Só não pode mesmo é ser conivente com a fome

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