João Wainer

Cineasta e fotógrafo, venceu o prêmio Esso de 2013 pela cobertura dos protestos de rua no país e é autor dos documentários "Junho" e "PIXO".

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João Wainer
Descrição de chapéu cracolândia

Nada de novo na cracolândia

Como morador do centro de São Paulo, vi operações policiais acontecerem tantas vezes que até decorei o roteiro

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De tempos em tempos, normalmente em ano de eleição, algum gestor público precisando de votos tem a brilhante ideia de acabar com a cracolândia. Para isso, costumam criar operações policiais dessas bem espalhafatosas, que chamam a atenção, fazem bastante barulho e garantem muitos minutos de Datena ao vivo. Tem que ser violento, ter helicópteros, bala de borracha, bomba de gás e bastante gente presa para o deleite da audiência.

Grupo de pessoas aglomeradas em uma rua arborizada
Usuários de crack se concentram na rua Helvétia próximo à avenida São João - Danilo Verpa - 15.mai.2022/Folhapress

Como morador do centro de São Paulo, vi isso acontecer tantas vezes que até decorei o roteiro. Os viciados saem andando e se espalham pelos bairros próximos, alguém aparece na TV dizendo que a cracolândia acabou e pouco tempo depois volta tudo a ser como era antes. Na última semana, mais uma dessas operações inúteis que sabemos como acaba foi deflagrada aqui no centro.

Em 2014 passei alguns meses frequentando a cracolândia e fiz esse vídeo para a TV Folha. Chegando devagar e com respeito, fomos ganhando a confiança de um grupo de viciados. Um dos mais inteligentes era o França, um carroceiro baixinho parecido com o Maradona que acredita ser impossível tirar a cracolândia daquela região. Usa como argumento uma teoria interessante, de que as pessoas ali são viciadas, não bandidos, e que a grande maioria quer sustentar o vício de forma honesta. Para quem não quer se envolver com o crime, o centro oferece ótimas oportunidades para se fazer dinheiro rápido nas ruas, como reciclagem de lixo, esmolas, prostituição e centenas de outras modalidades de rolos e contravenções.

A poucos metros do fluxo de viciados, por exemplo, fica a rua Santa Efigênia, conhecida por ser um dos maiores centros de compra e venda de eletrônicos do Brasil. França dizia que aquele era seu caixa eletrônico, pois o lixo daquela rua sempre foi muito valioso. Quando queria fumar era só chegar com a carroça que sempre tinha algo de valor sendo descartado. Disse também que o movimento enorme de pessoas nas ruas fazia da região o lugar ideal para se pedir esmolas e que a vocação do centro para a vida noturna e a prostituição ajudava a fechar essa conta. Claro que alguns escolhem o crime para sustentar o vício, mas esses não são a maioria.

Olhando por esse ponto de vista, talvez estejam todos enganados ao imaginar que tirando os traficantes da região a cracolândia acaba. Se a teoria do França estiver correta, o poder de compra dos viciados vem diretamente das migalhas que a cidade mais rica da América do Sul deixa cair no chão do seu centro, e se é aqui que os viciados e o dinheiro estão, os traficantes sempre vão dar um jeito de estar por perto. Pode parecer pouca grana, mas juntando tudo, de pedra em pedra, de trago em trago, os lucros acabam ficando bem atrativos para quem vende a droga.

O sonho do governo nunca foi acabar com a Cracolândia, e sim jogá-la para fora do alcance dos olhos da população. Já foram anunciados muitos planos mirabolantes para isso, desde a construção da São Paulo Tower, que seria o prédio mais alto do mundo com 103 andares, até a criação de um boulevard e de conjuntos residenciais, todos muito bonitos no papel e sempre cheios de isenção fiscal e enorme potencial de lucro para a iniciativa privada.

Paulo Maluf, quando foi prefeito, tentou sem sucesso importar de Nova York o plano de "Tolerância Zero" inspirado pelo prefeito Rudolph Giuliani. A gestão Serra/Kassab pouco tempo depois trouxe à tona o tão falado projeto Nova Luz, que foi abandonado logo depois. Haddad tentou a sorte com o programa "Braços Abertos", que queria organizar a bagunça ao invés de simplesmente expulsá-los, mas João Dória, em sua meteórica passagem pela municipalidade fez questão de encerrá-lo quando assumiu a cadeira para criar o também fracassado projeto "Redenção", que entre outras ações, previa resolver aquilo através de muitas desapropriações na área.

Com exceção do "Braços Abertos", todos esses programas tinham como objetivo acabar com a cracolândia partindo de um viés moralista e policialesco, o que me parece ser o principal erro dessa abordagem. A cracolândia não é um lugar, é um conjunto de pessoas doentes que orbita em torno da droga. Qualquer governo, ao dizer que vai "acabar" com isso, está sinalizando que se preocupa mais com um espaço físico do que com os seres humanos doentes que estão ali. De tão óbvio, é até constrangedor ter que repetir que essa é uma questão de saúde pública, que essas pessoas são doentes e deveriam ser tratados como tal.

Um fato curioso é que tanto Serra quanto Doria, prefeitos que atacaram a Cracolândia com violência no início de seus mandatos e prometeram acabar com ela na porrada, logo depois se candidataram ao governo do estado e foram eleitos. Ambos são do PSDB, partido do atual governador, Rodrigo Garcia, e do prefeito Ricardo Nunes, responsáveis pela operação da semana passada. Parece que a cracolândia é vista como um grande bolsão de votos que fica lá guardado para eles acessarem quando preciso. Tá ruim nas pesquisas, bate mais um pouco nos "nóias" ao vivo na TV, a população amedrontada vibra na poltrona e o candidato da vez cresce um pouquinho mais na disputa.

Ao fazer uma operação como essa, o governo provoca graves efeitos colaterais, mas que também podem ser úteis eleitoralmente. Imediatamente o preço do crack aumenta, já que fica mais difícil vender, obrigando os viciados a darem um jeito de arrumar mais dinheiro para consumir. A ação da polícia faz espalhar o fluxo de "nóias" por bairros vizinhos aumentando a sensação de insegurança do entorno e preparando o terreno para o discurso vazio de candidatos que já começam a surgir vendendo a solução para o problema que eles mesmo ajudaram a criar na base de fake news e discurso de ódio.

O ex-governador João Dória não foi o único a pagar o mico de anunciar o fim da cracolândia. Funcionários de outras gestões também o fizeram mostrando ignorância, arrogância e despreparo. Mas por que, mesmo nunca tendo dado certo na história, a polícia segue usando a mesma tática da abordagem violenta contra pessoas doentes? Porque dá voto, porque esse ano tem eleição e porque a cracolândia fica em uma região com o metro quadrado supervalorizado e que muita gente gostaria de explorar comercialmente. E as pessoas que estão ali? Essas, apesar de renderem votos quando estão apanhando, não costumam mesmo votar, então não importam.

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