Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.
Pensar Trump na Casa Branca é como entregar uma filha a um marginal
Só as pessoas frívolas não julgam os outros pelas aparências. A frase é de Oscar Wilde e, como normalmente acontece, acerta na mosca. A mosca em questão é Donald Trump.
Quando escrevi nesta Folha o primeiro texto crítico sobre Trump, vários leitores não me perdoaram. Eu, um "conservador", desejava a vitória de Hillary Clinton?
Entendo o raciocínio das massas: se Trump é um "conservador" (ou, para não sujar a palavra, alguém que está à "direita"), então o dilema está resolvido. Os vícios do homem transformam-se em virtudes; e as virtudes são elevadas a um patamar insano, ao mesmo tempo que a adversária desce às profundezas da indignidade moral.
Essa atitude só revela uma mentalidade fanática e um certo grau de subdesenvolvimento intelectual. Não vale a pena lembrar que nem os Republicanos se comportam assim com Trump –e muitos deles, cedo ou tarde, se distanciaram do candidato.
Mary Schwalm/AFP Photo | ||
O candidato republicano Donald Trump fala em comício |
Prefiro dizer que nenhuma pessoa adulta se comporta assim, sobretudo quando Trump, ao contrário do que pensam alguns "conservadores", nem sequer é um.
Mas antes de irmos à filosofia, relembremos a frase de Wilde: julgar os outros pelas aparências é o primeiro passo para um julgamento de carácter. Oscar Wilde não falava de coisas vulgares, como roupas ou penteados (embora, no caso de Trump, talvez se pudesse abrir uma exceção).
O objectivo do irlandês era outro: as maneiras antecedem a moral, como diz um personagem das suas peças. Mostra-me como te comportas e eu dir-te-ei quem és.
Desde o início que Trump representa o boçalidade mais extrema. As suas colocações sobre imigrantes, jornalistas, veteranos de guerra, deficientes, mulheres, adversários políticos - no fundo, qualquer ser bípede que não seja ele - denunciam uma espécie de "Homem de neandertal" que foi removido da pré-história e colocado em pleno século 21.
Não sou um puritano: gosto de rudeza no trato e abomino o pensamento politicamente correto com a fúria de um renegado. Mas até na rudeza e no pensamento politicamente incorreto tem que haver elegância e inteligência.
O caso tornou-se gritantemente óbvio nos três debates a que assisti por obrigação profissional. O dedo levantado; a gritaria e o insulto como argumentos políticos; a cara de náusea perante qualquer discórdia - tudo isso foi ganhando contornos paródicos e tristes.
Se Trump fosse um ator e se a sua candidatura fosse uma piada, eu até aplaudiria. O problema é que eu sou, acima de tudo, um vergonhoso pró-americano. Admiro a liberdade e a vitalidade dos Estados Unidos. Imaginar Trump na Casa Branca seria o mesmo que entregar uma filha a um marginal.
E aqui vamos à filosofia. Existem debates longos sobre o "conservadorismo americano". Todos eles confluem para a mesma pergunta: como é possível falar de "conservadores" nos Estados Unidos quando o país nasceu num contexto revolucionário?
A resposta possível é lembrar que os americanos têm algo de muito valioso para conservar: a sua Constituição. Esse, aliás, é o tema recorrente de vários autores - Rufus Choate, Peter Viereck, Russell Kirk etc. - que muitos leitores "conservadores" brasileiros leram mas não entenderam.
Nos três debates, o que menos me impressionou foi a total impreparação de Trump (alguém esperava outra coisa?). Pior, muito pior, foi ver um candidato à Presidência que, desprezando a Constituição, ameaçava a adversária com a cadeia; e que, confrontado com a possibilidade de perder, não apenas lançava dúvidas sobre a transparência do processo eleitoral como deixou uma sombra de ameaça se os resultados não lhe forem favoráveis.
Uma coisa dessas é normal na Venezuela ou no Zimbabwe. Não nos Estados Unidos. Ser "conservador" significa proteger valores ou tradições estabelecidos, por mais que isso perturbe a nossa paranoia narcísica. Entre esses valores ou tradições está o respeito pela democracia.
De resto, olhar para Trump como um "conservador" quando ele é esquivo em relação a Vladimir Putin (a maior ameaça ao Ocidente desde o fim da Guerra Fria) é um argumento anedótico. Ronald Reagan deve estar a dançar o twist na sepultura.
E Hillary? Conheço o bicho há muitos anos e não nego a natureza mendaz da senhora. Mas a política não é uma escolha maniqueísta; em certos casos, é uma opção pelo mal menor. Clinton é esse mal menor.
Os inimigos dos nossos inimigos, nossos amigos são? Prometo aceitar esse raciocínio infantil no dia em que muitos "conservadores" brasileiros colocarem Churchill e Stálin no mesmo retrato de família.
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